Por que a inflação deve perdurar no Brasil e no mundo por longo tempo
Mais do que um desarranjo episódico, o fenômeno já é encarado por economistas, empresários e financistas como uma realidade de prazo ainda indefinido
A inflação é uma força capaz de causar mudanças profundas e que recebe especial atenção dos economistas por sua complexidade. O prócer do liberalismo moderno, Milton Friedman (1912-2006), costumava compará-la a um veneno que se espalha lenta e gradualmente, contaminando negativamente a economia. O britânico John Maynard Keynes (1883-1946), por sua vez, usava a imagem de uma bola de neve, que começa pequena, mas rapidamente se torna uma avalanche de problemas. Combater o problema não é fácil, pois o oposto da inflação, a chamada deflação, pode acarretar baixo crescimento e estagnação da atividade econômica. Não à toa, autoridades monetárias dos quatro cantos do globo e especialistas se dedicam a esmiuçar de forma incansável suas dinâmicas em busca de mecanismos de controle que permitam ajustes refinados e multifatoriais. Tal esforço mostrou-se frutífero, dada a estabilidade que os países mais ricos alcançaram nas últimas décadas. Isso até a eclosão da pandemia de Covid-19, em 2020. Os lockdowns espalhados pelo planeta e o tranco da retomada que se seguiu provocaram um desarranjo na economia que os especialistas definem como choque de oferta, quando o desequilíbrio entre a capacidade de produção e a demanda catapulta os preços de bens, produtos e serviços.
Não bastasse tamanho baque, a invasão da Ucrânia pela Rússia, há um ano, abalou com força a economia global principalmente no que diz respeito ao fornecimento de combustíveis, energia e commodities agrícolas.
Como resultado, a zona do euro alcançou a maior inflação da sua história, com uma alta de 10,62% no acumulado de doze meses até outubro do ano passado, e os Estados Unidos enfrentaram uma alta persistente de 6,4% em 2022, capaz de atrapalhar os planos políticos do presidente Joe Biden. Já o Brasil atingiu um preocupante índice de 10,06% em 2021, enquanto no ano passado o IPCA ficou em 5,79%, ainda acima da meta estipulada de 3,5% pelo BC. Em escala global, estima-se que o índice de inflação seguirá no patamar de 5%, nos países desenvolvidos, mais que o dobro do registrado nos últimos anos. Mais do que um desarranjo episódico, o fenômeno já é encarado por economistas, empresários e financistas como uma realidade que deve perdurar por um prazo ainda indefinido.
Como efeito sintomático dessa preocupação, os bancos centrais sinalizam claramente que vão seguir com os juros em alta, a principal ferramenta para manter o dragão inflacionário sob algum controle. Na quarta-feira, o Federal Reserve, banco central americano, divulgou a decisão de elevar os juros em 0,25 ponto porcentual, para 4,75%, e que continuará o aperto até atingir o seu objetivo de 2% de inflação (em dezembro, o índice bateu em 6,45%, considerando-se os doze meses anteriores). No dia seguinte, o Banco da Inglaterra elevou a taxa no país para 4%, a maior desde a crise global de 2008. No Brasil, o BC manteve, no dia 1º, a Selic em 13,75%, e indicou que a taxa permanecerá nesse patamar elevado por mais um bom período, devido à conjuntura “particularmente incerta no âmbito fiscal” e a “uma maior persistência das pressões inflacionárias globais”. Os efeitos desse aperto em escala mundial já são perceptíveis e a inflação deve ceder um tanto. Mas muitos especialistas apontam que o cenário global está longe de ser estável, o que torna o combate mais penoso do que foi no passado.
Os Estados Unidos e a Europa, assustados com o tamanho da dependência à qual estão expostos frente a rivais do porte da China e da Rússia, pretendem voltar a fabricar produtos e gerar energia em seu próprio território (ou em vizinhos mais confiáveis). Trata-se de uma reversão do processo de globalização das últimas décadas, que faz a questão do custo tornar-se secundária, principalmente no que diz respeito ao emprego de um contingente de mão de obra com remuneração mais elevada. “A rivalidade estratégica entre Estados Unidos e China e a guerra Rússia-Ucrânia estão reconfigurando as cadeias de suprimentos. Mas, ao mesmo tempo que cria oportunidades para outras economias emergentes, esse processo de realinhamento resulta em investimentos redundantes e custos bem mais altos”, diz Sara Johnson, diretora-executiva de pesquisa econômica da S&P Global Market Intelligence.
Em meio à complexa dinâmica que engendra a inflação nas economias, ainda têm grande potencial de impacto fatores como o processo de transição energética para fontes mais limpas de energia. A substituição do petróleo tem exigido pesados investimentos que só serão recompensados em cerca de uma década, à medida que antigas refinarias começarem a diminuir de relevância frente às imensas instalações para a geração de energia eólica ou solar. Da mesma forma, o impacto ambiental da exploração econômica conjugado às incontestáveis alterações climáticas que acontecem pelo planeta consiste em uma ameaça à produtividade da agricultura e da pecuária e podem ocasionar escassez. Secas, chuvas excessivas e desequilíbrios de temperatura prometem causar, em longo prazo, elevação nos preços das commodities.
Em janeiro, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, o executivo alemão Christian Ulbrich, CEO do grupo imobiliário internacional JLL, delineou a nova realidade que ele e seus pares preveem para o mundo dos negócios. “A inflação veio para ficar e isso terá impacto severo em nossa realidade, em que seremos obrigados a lidar com índices bem mais elevados que os do passado recente”, disse. Alguns respeitados economistas seguem na mesma linha de raciocínio. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), defende a ideia de que os países ricos adotem uma nova meta de inflação na casa dos 3% e ressalta que o atual processo de estabilização da economia pode ser mais difícil do que se imagina. “A questão é até que ponto as últimas décadas, caracterizadas por uma inflação estável e que não tiveram nada parecido com a epidemia de Covid-19 ou a invasão da Ucrânia, são parâmetros confiáveis para o futuro. Há boas razões para duvidar”, escreveu em artigo publicado no Instituto Peterson para Economia Internacional.
No Brasil, que já conviveu com a hiperinflação mas experimentava uma confortável baixa nos índices nos últimos anos, a recidiva do velho dragão é motivo de severa preocupação. Se por um lado a política de mão de ferro de juros altos exercida pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, conseguiu controlar o pior momento, em 2021, quando o índice ficou em 10,06%, o atual governo começa a pressionar por mudanças. Em seu primeiro mês de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem tecendo críticas à taxa elevada, que em sua visão prejudica a evolução da atividade econômica. As reclamações encontraram eco em declarações recentes do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), Geraldo Alckmin. Além disso, Lula passou a palpitar também a respeito das metas de inflação estabelecidas pelo Banco Central, que cairá para 3% em 2024 e 2025, patamar bem inferior que o alvo das gestões petistas anteriores. A meta é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado que deverá se reunir em junho para definir a meta de inflação de 2026. Muitos acreditam que a reunião, da qual participarão Haddad, Campos e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, poderá revisar para baixo o índice já estabelecido para o próximo ano. O governo diz que, por enquanto, não há nenhuma discussão técnica para uma alteração, a qual seria malvista pelo mercado, por passar a mensagem de que o governo não está tão interessado em ajudar o BC a controlar a inflação.
A ideia de o governo pedir a flexibilização das metas depois de estabelecidas não agrada a uma grande ala de economistas, e não apenas por mudar os parâmetros com a batalha ainda em andamento, mas também por sinalizar um interesse do Poder Executivo de intervir no BC, entidade que conquistou sua autonomia que a blinda de interferências políticas há apenas dois anos. Discussões de mudanças de metas devem ser tratadas em caráter mais técnico possível. Afinal, quando políticos entram na conversa, o efeito costuma ser o reverso do desejado. Na última segunda-feira, 30, depois das declarações de Lula sobre juros e inflação, as projeções de mercado passaram a apontar para um índice de 5,74% para este ano, uma alta de 0,26 ponto frente à da semana anterior e de 0,43 ponto em relação a dezembro — isso com uma meta prevista de 3,25%. É um sinal evidente da fragilidade brasileira em um mundo onde os efeitos sombrios da nova onda inflacionária devem demorar para se dissipar.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827