PEC dos Precatórios pode trazer novas turbulências para a economia do país
Na reta final da criação do Auxílio Brasil, a aprovação do projeto no Senado encontra uma já delicada situação do Brasil, que entra em recessão técnica

Idealizado como o sucessor do Bolsa Família, o programa assistencial bolsonarista Auxílio Brasil teve um processo de gestação comparável a uma novela que começa mal, é conduzida aos tropeços por todo o seu enredo e, sem surpresas, chega ao final de forma atabalhoada. O último capítulo, que estabeleceu o modelo de financiamento do programa que pagará em média 400 reais mensais a 17 milhões de famílias, se confirmou com a aprovação da PEC dos Precatórios, na quinta-feira 2, pelo plenário do Senado. O texto, que já havia sido aprovado na Câmara, retorna agora aos deputados para uma última avaliação por ter sido modificado pelos senadores e depois segue para a promulgação pelo Executivo.
Do ponto de vista da saúde fiscal do país, o processo foi um caso clássico de emenda que só piorou o soneto. Durante mais de um ano, de forma responsável, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e a sua equipe procuraram estabelecer fontes de financiamentos para pagar um aumento do benefício do antigo Bolsa Família, assim que o auxílio emergencial criado na pandemia fosse descontinuado. Desde a primeira versão estudada pelo ministério — que era substituir programas sociais de menor impacto por um aumento do auxílio — até a quinta possibilidade, que propunha benefício médio de 300 reais, todas as sugestões foram dinamitadas por interesses eleitoreiros de Jair Bolsonaro ou do Congresso.
No percurso, as propostas só pioraram e a credibilidade da pasta econômica, a fiadora das contas públicas, foi sendo solapada junto ao mercado financeiro. No fim, Guedes acabou apoiando a controversa PEC dos Precatórios, que estabelece duas gambiarras: a limitação para o pagamento anual das dívidas judiciais da União já reconhecidas pelo Judiciário e a mudança na data do índice de inflação para cálculo do teto de gastos do período seguinte. Com esses artifícios, o Executivo espera ter a sua disposição 106 bilhões a mais em 2022, que serão usados para cobrir despesas provenientes dos Auxílio Brasil, estimadas em 62 bilhões de reais. Tal conduta derruba de forma definitiva o conceito de responsabilidade nos gastos públicos, vigente desde que o teto de gastos foi criado, em 2016. “O cenário fiscal depende de como o governo gasta o dinheiro que será liberado. Não haveria muitos problemas se fosse de forma cautelosa. A situação passa a ser preocupante quando o governo deixa de ser responsável”, diz Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda.
Em vez de transmitir responsabilidade, o processo de criação do Auxílio Brasil reforçou as incertezas, com resultado direto sobre o crescimento econômico. No terceiro trimestre do ano, quando a vacinação já estava avançada e havia a expectativa de retomada, os efeitos da instabilidade fiscal cobraram a sua conta na forma de inflação crescente e sucessivas altas do dólar, que tiraram poder de consumo do brasileiro. A consequência foi queda de 0,1% no PIB do período, divulgada nesta quinta, 2. Somando-se a retração de 0,4% registrada no segundo trimestre, o país mergulhou no que os economistas chamam de recessão técnica. Nesse cenário, a recuperação da credibilidade econômica do governo exigirá um esforço considerável (algo difícil de acreditar às vésperas do que promete ser um tumultuado ano eleitoral).
Se não bastasse pôr em dúvida o futuro, as manobras recentes ainda representaram um grande retrocesso em relação a conquistas do passado. O teto de gastos foi criado como forma de obrigar a União a gerir os recursos públicos de forma mais eficiente. É importante ressaltar que a pandemia, de fato, dificultou tal missão, ao exigir gastos com saúde e a criação de um auxílio emergencial. Mas, ao jogar para o futuro o pagamento dos precatórios e ao criar novos gastos sem conter despesas já existentes, será uma missão quase impossível colocar as contas em ordem. O problema só tende a crescer. Segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, se o fluxo de precatórios crescer 5% ao ano, vai se criar um estoque de 855 bilhões de reais de dívidas não pagas em 2026.

Para dar conta disso, e da piora das condições econômicas, o governo precisará acumular superávit de 450 bilhões de reais nos próximos anos, o que exigiria um esforço fiscal hercúleo de 3,4% do PIB por ano — neste ano, a estimativa oficial é de 96 bilhões de reais de déficit. É uma conta arremessada para o futuro, mas que já é cobrada pelo mercado neste momento com menos investimentos e mais inflação. Ou seja, o Auxílio Brasil, vendido como solução de emergência para a situação social agravada pela pandemia, custará para toda a sociedade (incluindo as fatias mais pobres) bem mais caro do que parece. “Uma boa política de transferência de renda aumenta o lucro de quem produz, o nível de emprego e favorece o aumento do consumo dos que foram empregados”, diz Julio Sérgio de Al- meida, ex-secretário de Política Econômica. “Mas se criou uma sensação de que foi feita toda uma mobilização política não tão nobre assim. O benefício é positivo dos pontos de vista social e econômico, mas a solução em cima dos precatórios não foi um bom procedimento.”
Em uma situação como essa, o risco fiscal só aumenta. Projeções do Tesouro Nacional estimam que a dívida líquida do setor público vai permanecer acima do patamar anterior ao da pandemia, de 54,6% do PIB, por mais dez anos. A melhor forma de o governo desmentir tantos prognósticos negativos seria fazer avançar reformas que melhorem as contas públicas. Guedes tem dito a interlocutores estar esperançoso com o andamento das reformas administrativa e do imposto de renda, o que traria ao governo um aumento de arrecadação de impostos. Como já estamos em dezembro, é mais fácil acreditar em Papai Noel do que apostar nesse tipo de avanço na atual gestão de Jair Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767