Número de recalls aumenta, mas a adesão dos motoristas costuma ser baixa
Mudanças no Código de Trânsito deverão melhorar o cenário
O termo recall (“chamar de volta”, em tradução livre do inglês) já é bem compreendido pela maioria dos brasileiros. Trata-se da convocação de consumidores para consertar ou substituir um produto que apresenta um defeito de fabricação, uma medida prevista no Código de Defesa do Consumidor e que visa a limitar a responsabilidade por negligência das empresas. São comuns, por exemplo, em brinquedos e remédios. Na indústria automobilística, no entanto, os recalls causam maior furor, pois as falhas podem causar acidentes de graves consequências. Nesse contexto, chama atenção o balanço de recalls realizados em 2021.
No terceiro trimestre, segundo levantamento feito pela empresa Papa Recall, aplicativo criado em 2018 para informar, via smartphone, quando um defeito é detectado, foram realizadas 21 campanhas desse tipo, envolvendo 124 modelos de catorze montadoras. Os problemas mais recorrentes foram com airbag, freio e combustível. As líderes em chamados foram a Porsche, com quatro, e a Volkswagen, com três. Em comparação com o mesmo período de 2020, houve um acréscimo de 106,6% na quantidade de modelos com problemas. Ainda que o dado deva ser relativizado, pois a pandemia reduziu o movimento do setor no ano passado, a situação não é ideal. “Não existe recall tranquilo, se é feito um chamamento é porque há riscos graves”, ressalta Vinicius Melo, CEO da Papa Recall. “Por algum tempo, as montadoras jogaram o problema para debaixo do tapete, mas hoje em dia isso mudou.”
O ano de 2014 marcou um divisor de águas. Na ocasião, foi revelado o escândalo dos “airbags mortais” produzidos pela fabricante japonesa Takata, que fornecia as bolsas infláveis para mais de trinta montadoras ao redor do mundo. Com o passar dos anos e dependendo do grau de umidade, o deflagrador, dispositivo responsável por inflar a bolsa, poderia romper um aro metálico e lançar estilhaços contra o rosto dos motoristas. As marcas mais afetadas foram Honda, Toyota e Nissan. No Brasil, registraram-se ao menos três mortes. Até o início de 2021, segundo dados da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), o país tinha mais de 4 300 automóveis de dezesseis montadoras envolvidos no recall da Takata, mas nem 50% do total havia sido reparado. A baixa adesão não era surpresa: o atendimento médio no Brasil costumava rondar em 40% — quanto mais velho o modelo, menor a frequência dos reparos. A grande dificuldade era encontrar o atual dono dos veículos, pois os métodos de divulgação se limitavam ao noticiário tradicional e campanhas publicitárias.
A Takata, que sabia do problema mais de uma década antes de se tornar público, acabaria por decretar falência e ser vendida para uma concorrente. O caso gerou reação, inclusive no Brasil. Desde abril deste ano, está em vigor uma mudança no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que determina o bloqueio do Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRLV) de modelos com recall não atendido em prazo superior a um ano a partir do início da campanha. Em parceria com o Denatran, a Senacon passou a utilizar a base de dados do Ministério da Infraestrutura para enviar mensagens diretamente aos proprietários dos carros defeituosos. Quem não cumprir terá problemas: conforme o CTB, trafegar sem que o veículo esteja licenciado é uma infração gravíssima, com multa no valor de 293,47 reais, 7 pontos na carteira e a apreensão do veículo. O controle pode ser feito por meio do aplicativo gratuito Carteira Digital de Trânsito (CDT).
Algumas montadoras vão além e têm, literalmente, pagado para que seus clientes atendam aos recalls. Foi o caso da General Motors, que distribuiu um vale-combustível de 500 reais e sorteou um Onix zero-quilômetro a proprietários dos carros Chevrolet Celta e Classic, que continham airbags da Takata. “Tínhamos problemas, especialmente com carros mais velhos, mas hoje estamos caminhando para uma legislação de Primeiro Mundo”, diz João Irineu Medeiros, diretor de segurança veicular da Associação Brasileira Engenharia Automotiva (AEA). “Teremos um retrato melhor em abril de 2022, quando completar um ano da vigência da lei.” A segurança dos motoristas agradece.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763