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Mil e uma utilidades

Inaugurada na China, a era dos superaplicativos — assim chamados os apps que realizam uma vasta gama de funções — ganha força no mercado brasileiro

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h28 - Publicado em 29 mar 2019, 07h00

A popularização dos aplicativos para smartphones é um fenômeno relativamente recente. Nasceu com a App Store, lançada em 2008, com apenas 500 opções. Hoje, são mais de 6,3 milhões de aplicativos em todo o mundo, que funcionam em qualquer marca de celular. O crescimento assombroso do mercado criou um problema para os desenvolvedores de apps (termo em inglês que acabou adotado entre nós): o excesso de concorrência. Pesquisas mostram que as pessoas têm até 100 programas baixados em seus smartphones, mas raramente usam mais do que dez deles por dia. Uma solução encontrada na China — país muito acostumado a lidar com excessos de todo tipo — tem se espalhado pelo mundo: os superaplicativos. É como são chamados os aplicativos para celulares e tablets capazes de realizar várias funções, como, por exemplo, fazer compras, pedir pizza, agendar um táxi, transferir dinheiro, gerenciar uma conta digital — tudo na mesma plataforma. A disputa para ser o primeiro grande superapp brasileiro e, assim, criar no consumidor local o hábito de usar os seus serviços já começou e envolve empresas graúdas.

O mais novo competidor é a Dotz. Fundada, em 2000, pelos irmãos Roberto e Alexandre Chade como um programa de fidelidade voltado para a internet, ela não só se transformou na maior empresa do ramo no país como montou uma rede abrangente de parceiros com cerca de 300 varejistas no mundo físico e virtual. O DotzPay (nome ainda provisório) chegará ao público em maio para enfrentar concorrentes como o Mercado Pago, o superapli­cativo do Mercado Livre (o maior site de compra e venda de produtos do país), e estrelas ascendentes como a colombiana Rappi.

MeliCidade
JÁ NA DISPUTA - Sede do Mercado Pago, em Osasco: o superapp conta com o apoio do Mercado Livre para crescer (Jefferson Coppola/VEJA)

A inspiração de todos é o mercado chinês, no qual os superapps AliPay e WeChat já ultrapassaram a impressionante marca de 200 milhões de usuários diários. É como se a população brasileira inteira, hoje em 209 milhões de pessoas, entrasse no mesmo aplicativo todos os dias. O AliPay, que pertence ao grupo Alibaba, é a carteira digital mais utilizada do mundo. Ela oferece uma série de serviços financeiros, do pagamento de contas a transferências. O WeChat, por sua vez, pertence ao gigante de tecnologia Tencent e nasceu como uma plataforma de mensagens instantâneas, mas hoje permite os mais variados tipos de serviço — entre eles, reservas em restaurantes e salões de beleza, aluguel de bicicletas e, claro, pagamentos e transferências.

Toda essa atividade dentro do programa de uma só empresa gera uma avalanche de informações sobre os hábitos dos consumidores. Não demora para o usuário começar a receber propagandas e ofertas de serviço customizadas, que devem ser usadas e pagas dentro do próprio superapp. O AliPay e o WeChat tiraram proveito de uma característica da China que se assemelha com a realidade brasileira: uma parcela considerável da população não tinha conta em banco nem cartão de crédito. Metade das operações no Brasil ainda é realizada com dinheiro, o que dá a dimensão do potencial desse mercado. São brasileiros que fazem compras regularmente mas não passam pelos bancos. E, se o plano dessas empresas der certo, nunca vão passar.

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O superaplicativo da Dotz pretende repetir o sucesso de suas inspirações chinesas, e já nasce com uma vantagem: dispõe de uma base ampla de consumidores que fazem uso recorrente dos seus serviços. A Dotz conta com mais de 40 milhões de usuá­rios, dos quais 11 milhões de maneira regular, mensalmente. São consumidores atraídos pela moeda vir­tual que, desde a sua criação, batiza a empresa e funciona como pontos de fidelidade: compras realizadas nas redes parceiras dão direito a um certo número de dotz, que, por sua vez, podem ser utilizados para novas aquisições com descontos. Trata-se de um ciclo que se autoalimenta, servindo de impulso para a moeda virtual. E este é mais um ingrediente fundamental para o sucesso: o estímulo à frequência de uso do aplicativo. Com dezenove anos de experiência e presença em todos os estados, a Dotz desenvolveu uma rara capacidade de coletar e analisar informações detalhadas dos hábitos de consumo dos brasileiros. Houve mais de 650 milhões de transações nos últimos dois anos, em cerca de 10 000 pontos de venda. Como já ensinaram Facebook, Amazon e Google, não há nada mais valioso nos dias de hoje do que os dados dos internautas, e a Dotz vai começar a fazer uso desse manancial de informações. “Cada vez mais, o consumidor concentra as suas compras no celular. O superapp permite gerar valor para ele, por meio dos descontos, além de conveniência”, diz Roberto Chade, CEO da empresa.

WeChat
INSPIRAÇÃO  – Mascotes do superapp WeChat: vice-líder no mercado chinês, com mais de 200 milhões de usuários regulares (Bobby Yip/Reuters)

Como o mercado digital tem escala global, é natural que estrangeiros também tentem conquistar público no Brasil. A startup colombiana Rappi estreou por aqui em julho de 2017 como um serviço de entrega tradicional de comida. Hoje oferece desde massagem e manicure até test drive em carro novo. E transações financeiras, naturalmente. Seus números são invejáveis. Ela tem crescido 30% ao mês, o que significa que a cada três meses dobra de tamanho. “Estamos sempre ma­pean­do novas oportunidades e parcerias. O grande segredo desse negócio é desenvolvê-las rapidamente e colocar no aplicativo”, explica Fernando Vilela, executivo-chefe de crescimento da Rappi no Brasil. A empresa não divulga os seus números separados por país, mas, nos sete mercados da América Latina em que atua, o aplicativo teve mais de 13 milhões de down­loads. Como se trata de uma novata, a Rappi tem sido agressiva em oferecer descontos para atrair usuários e aumentar a frequência de utilização daqueles que já estão na sua base. Um exemplo é o seu serviço Rappi Prime, em que o consumidor paga uma mensalidade de 19 reais e tem direito a um número ilimitado de fretes grátis. A empresa opera no vermelho, mas isso não é um problema no atual está­gio porque conta com capital à disposição — sua última rodada de captação a elevou ao status de unicórnio, com avaliação de pelo menos 1 bilhão de dólares.

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O Mercado Livre, a maior plataforma de compra e venda de produtos do país, adotou uma estratégia diferente: optou por oferecer a sua conta digital em um braço à parte, o Mercado Pago. Nele, disponibiliza ao consumidor opções como deixar o dinheiro rendendo, fazer transferências, pedir crédito, obter descontos com redes parceiras e, claro, pagar ou receber por compras no Mercado Livre. Ele já conta com 2,4 milhões de usuários, e esse número não para de crescer. O volume de transações subiu quase 70% no ano passado. “Nosso objetivo é que o aplicativo seja um substituto natural do banco para o público que não tem acesso aos serviços financeiros tradicionais”, diz Túlio Oliveira, diretor do Mercado Pago.

Evidentemente, não é um jogo para todos. Que o diga a startup espanhola Glovo, que deixou o Brasil em março alegando que precisaria de mais recursos para ser competitiva em um mercado tão disputado. “É muito difícil sair do zero e se tornar relevante”, diz Caio Camargo, sócio-diretor da consultoria GS&UP. Em paralelo, empresas de grande porte, como o Magazine Luiza e o Grupo Pão de Açúcar, já anunciaram que estão desenvolvendo os próprios superapps. Trata-se de uma disputa que está apenas começando.

Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

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