Lula volta a mirar BC em meio à necessidade de cortes de gastos do governo
Críticas do presidente à entidade tentam transferir a responsabilidade pela encrenca em que o Executivo se meteu ao negligenciar o ajuste fiscal
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vive dias conturbados. Estrela de um ministério apagado, ele foi desautorizado pelo presidente da República, viu a relação com o Congresso se desgastar após a devolução da medida provisória que restringia o uso de créditos tributários pelas empresas e esteve no centro de uma onda de boatos sobre sua permanência no governo.
O cenário assustou os investidores, derrubou a bolsa de valores e elevou a cotação do dólar, que atingiu o maior valor desde janeiro de 2023 — sinais que, combinados, indicam que há algo muito errado acontecendo. Em meio a essa turbulência, no sábado, 15, o ministro participou como convidado de um evento em São Paulo. Falando para uma plateia de empresários, fez uma avaliação interessante sobre o país. O Brasil, segundo ele, é “uma encrenca”, um lugar “difícil de administrar”, e quem pode fazer a diferença, ou seja, quem ocupa posições de poder, muitas vezes não faz “a coisa certa” e “nem sempre está pensando no interesse público”.
A crítica do ministro era dirigida ao Congresso e aos empresários, mas o diagnóstico caberia muito bem ao Executivo. Em um ano e meio de governo, Haddad tem sido uma espécie de cavaleiro solitário na tentativa de equilibrar as contas públicas — desafio que está na raiz do cenário turbulento e de muitas encrencas que realmente tornam o Brasil um país difícil de administrar. Não há mais espaço para aumento de impostos, o que torna a austeridade a única alternativa. Depois da confusão provocada pela devolução da medida provisória do PIS/Cofins,, Haddad se reuniu com a ministra do Planejamento, Simone Tebet, em busca de uma saída para o impasse. “Nós temos agora um dever de casa sobre o lado da despesa. Se os planos A, B, C e D já estão se exaurindo para não aumentar a carga tributária pela receita, sob a ótica da despesa, nós temos os planos A, B, C e D, que estão sendo formulados”, disse Tebet. A ministra também pode ser incluída na categoria das pessoas que tentam fazer a coisa certa. Mas, ao que parece, ela está no grupo das exceções.
Dias depois, o presidente Lula até reconheceu a necessidade de cortar gastos, mas disse que existe uma “divergência profunda” sobre o que ele considera gasto e investimento. A seu modo, ele tentou explicar: “Tem uma coisa na minha vida que eu sempre prezei muito: primeiro, eu não gosto de gastar aquilo que eu não tenho, aprendi com uma mulher analfabeta, que era minha mãe. ‘Você não pode gastar o que você não tem, você só pode gastar o que você ganha. Se você tiver que fazer uma dívida, você tem que fazer uma dívida para aumentar alguma coisa na vida.’ É assim que eu prezo a minha consciência política. Nós temos que gastar corretamente aquilo que nós temos, e é por isso que nós estamos fazendo um estudo muito sério sobre o Orçamento”, disse em entrevista à rádio CBN. Não conseguiu ser muito claro. Na sequência, disparou críticas contra os empresários, contra o Congresso e, principalmente, contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
Lula disse que a economia do Brasil vai bem. A única “coisa desajustada” é a taxa de juros, que estaria alta por causa da autonomia do Banco Central, que seguiria orientação política e trabalharia contra os interesses do país. “É preciso baixar a taxa de juros compatível com a inflação. A inflação está totalmente controlada. Fica se inventando discurso de inflação do futuro, o que vai acontecer”, ressaltou o presidente, antes de partir para o ataque a Campos Neto. “Um presidente do Banco Central que não demonstra nenhuma capacidade de autonomia, que tem lado político e que, na minha opinião, trabalha muito mais para prejudicar do que para ajudar o país. Não tem explicação a taxa de juros do jeito que está”, analisou. “A quem esse rapaz é submetido? Como vai a festa em São Paulo quase assumindo candidatura a cargo no governo de São Paulo? Cadê a autonomia dele?”, acrescentou, referindo-se a um evento de que o presidente do BC participou recentemente na companhia do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Feitas às vésperas de uma das reuniões mais importantes do Comitê de Política Monetária — que, como se previa, interrompeu um ciclo de cortes de juros, com a manutenção da taxa em 10,5% ao ano —, as insinuações de Lula, além de tentarem constranger os integrantes do Copom, tinham o claro objetivo de transferir para o BC a responsabilidade pela encrenca em que o governo se meteu ao negligenciar o ajuste fiscal.
É público que, enquanto o ministro da Fazenda busca alternativas para tentar equilibrar as contas, o chefe da Casa Civil, Rui Costa, trilha o caminho inverso. Por trás desse paradoxo, há divergências de opiniões, mas também interesse eleitoral. Os dois petistas se apresentam como candidatos à sucessão de Lula em 2030 ou em 2026, caso o presidente decida não concorrer à reeleição. Aplicado o diagnóstico de Haddad, Rui Costa poderia perfeitamente ser listado entre aqueles que “não fazem a coisa certa” e “nem sempre pensam no interesse público”. Costa defende o abrandamento das metas fiscais, sabendo que a tarefa de equilibrar o Orçamento, embora necessária, vai gerar atritos com setores influentes da atividade econômica, inevitáveis embates com o Congresso e pode resultar, num primeiro momento, em impopularidade — tudo o que Lula se esforça para evitar. A encrenca entre os dois ministros rende intrigas, troca de acusações e ruídos que ampliam o nível de desconfiança em relação ao governo.
Há outros integrantes do Executivo dando sua parcela de contribuição para fazer do Brasil “um lugar difícil de administrar”. São autores de propostas populistas, projetos retrógrados, promessas não cumpridas, trapalhadas, leniência e omissão em áreas importantes. Combinadas com o enrosco econômico, formam um conjunto respeitável de encrencas que precisam ser enfrentadas (veja o quadro) por quem ocupa posição de poder. Vacilante e ambíguo em suas declarações sobre a real disposição de promover o ajuste fiscal necessário, o presidente, segundo consta, teria sido bem mais contundente sobre o tema numa reunião reservada que teve com Fernando Haddad e Simone Tebet no Palácio do Planalto. Teria, inclusive, cobrado dos ministros um plano de ação detalhado. É um bom sinal, que aponta na direção de fazer a coisa certa, sem deixar de lado o interesse público, como deve ser.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898