Lição ignorada
A Vale e seu CEO estavam confiantes de que desastres como o de Mariana não se repetiriam; o preço pelo engano vai ser cobrado ao longo de anos
No dia em que assumiu a presidência da Vale, 22 de maio de 2017, o engenheiro Fabio Schvartsman declarou a alguns funcionários que só havia aceitado o convite para comandar a mineradora depois de ter recebido a garantia de que todas as barragens da empresa eram seguras. Ele não aceitaria correr o risco de enfrentar um desastre como o de Mariana, da mineradora Samarco, da qual a Vale é sócia controladora. O executivo viria a anunciar que o lema de sua gestão seria “Mariana nunca mais”. Antes de completar dois anos no cargo, Schvartsman, de 64 anos, vive o pior pesadelo de sua carreira, até então marcada pela credibilidade e pela entrega recorrente de bons resultados nas companhias pelas quais passou. Seu currículo estará, de agora em diante, associado a um desastre socioambiental, duplamente trágico por ser também o maior acidente trabalhista da história do país, com um número de mortos que deve ultrapassar a casa dos 300. Tudo na contramão do que planejou evitar— e acreditava ter se precavido para conseguir.
A empresa não ficou de braços cruzados nesse período. A partir de Mariana, a Vale adotou uma série de procedimentos para reforçar a segurança nas barragens, de revisões periódicas e auditorias externas à instalação de um sistema automatizado de monitoramento (uma das companhias de certificação é a alemã Tüv Süd; dois de seus engenheiros que haviam atestado a estabilidade da barragem em Brumadinho foram presos preventivamente por trinta dias por suspeita de homicídio qualificado, crimes ambientais e falsidade ideológica). O nível de confiança de que tudo estava sob controle subiu a tal ponto que, em agosto passado, Schvartsman decidiu retomar as ações de publicidade da Vale, com o mote de que a empresa é sustentável. A tragédia de Mariana havia levado à suspensão dos anúncios, e boa parte dos executivos tentou manter a mineradora longe dos holofotes.
Com tudo isso, é óbvio que a Vale não fez o que tinha de fazer, sobretudo para proteger vidas humanas em caso de uma catástrofe. Será especialmente difícil resgatar a imagem da empresa. Pressionado pelas autoridades e pela opinião pública, Schvartsman anunciou na terça-feira 29 a decisão de desativar dez barragens que possuem estrutura semelhante à das que se romperam em Mariana e em Brumadinho — providência que, claramente, poderia e deveria ter sido tomada antes. Agora, a empresa corre para anunciar medidas preventivas, antecipando-se a eventuais imposições do governo. Na tragédia anterior, a direção da Samarco foi duramente criticada por tentar se eximir de sua responsabilidade nas primeiras manifestações após o desastre. A Vale, então comandada por Murilo Ferreira, procurou se desvincular da Samarco. Desta vez, o script foi outro: Schvartsman convocou uma entrevista com a imprensa poucas horas depois do rompimento em Brumadinho. “Como vou dizer que a gente aprendeu (com a tragédia de Mariana) se acaba de acontecer um acidente desses?”, questionou. Espera-se que agora aprendam. Em algumas atividades, negligenciar os riscos de impactos sociais e ambientais em seus modelos de negócios e na tomada de decisões pode custar vidas. Menos importante, por incomparável, mas ainda assim relevante, é o prejuízo material e de reputação, que pode perdurar por gerações. Atividades que lidam com perigo para o meio ambiente e a vida humana já estão sujeitas à regulação do Estado, mas isso não significa que o cumprimento das exigências legais seja suficiente. “Muitas vezes, as empresas só descobrem na prática que é necessário ir além do que as normas preveem para administrar adequadamente os riscos”, diz o advogado Richard Blanchet, do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.
A tragédia em Brumadinho interrompe uma trajetória que havia levado a Vale para um dos melhores momentos de sua história. Sob o comando de Schvartsman, a mineradora elevou seus indicadores operacionais e financeiros mesmo com os aportes periódicos para que a Samarco pague as indenizações relativas a Mariana. A divulgação do último balanço trimestral, em outubro passado, foi razão de celebração. “Estamos transformando a Vale em uma empresa muito previsível, entregando desempenho operacional sólido”, disse Schvartsman na ocasião. Nunca a companhia havia produzido tanto minério de ferro. A qualidade da matéria-prima também melhorou, o que se traduziu em preços mais altos e lucros mais gordos. A dívida da mineradora caiu pela metade em apenas um ano, passando de 21 bilhões para 10,7 bilhões de dólares. A Vale estava com tanto dinheiro em caixa que resolveu premiar os acionistas: distribuiu 7,7 bilhões de reais em dividendos no primeiro semestre de 2018, e projetava pagar outros 9 bilhões de reais referentes à segunda metade do ano passado — a suspensão do pagamento foi uma das primeiras medidas da direção depois do acidente em Brumadinho.
A boa performance teve reflexo nas ações da empresa, que haviam se valorizado 106% desde a posse de Schvartsman até o dia do desastre. Os resultados eram tão positivos que ninguém se surpreendeu com a decisão do conselho de administração de renovar com antecedência, já no fim de 2018, o mandato de dois anos de Schvartsman como CEO, que só venceria em maio — apesar de completar 65 anos em 2019, um limite apontado como o motivo oficial do afastamento de seu antecessor Murilo Ferreira. Schvartsman vinha de uma gestão elogiada na liderança da Klabin, da indústria de celulose, com ganhos de eficiência e a duplicação tanto da capacidade de produção quanto do faturamento entre 2011 e 2016.
Esse cenário promissor deu lugar a um quadro recheado de incertezas. Schvartsman e a diretoria permanecem no cargo até segunda ordem, mas o governo, um dos principais acionistas da Vale por meio de fundos de pensão de estatais e do BNDES, não descarta buscar um consenso com os demais sócios (o Bradesco e o grupo japonês Mitsui) para promover uma mudança. Essa decisão vai depender dos resultados das investigações. O tamanho da conta total para a mineradora, que inclui multas ambientais e indenizações morais e materiais para as famílias das vítimas, é outra incógnita. Não é só. Ao menos dois escritórios americanos já entraram com ação coletiva contra a Vale pelas perdas causadas a investidores estrangeiros. A agência de classificação de risco Standard & Poor’s sinalizou que a nota de crédito da empresa pode ser rebaixada. Tantas incertezas explicam a forte reação de venda das ações no primeiro pregão no Brasil depois do acidente, quando o recuo de 25% na cotação significou para a Vale a perda de 72 bilhões de reais em valor de mercado, de 297 bilhões para 225 bilhões. Com toda a atenção voltada para a empresa, qualquer informação tem reflexos imediatos na bolsa. O anúncio de desativação de barragens semelhantes à de Brumadinho, por exemplo, causou uma alta de 9% nas ações da mineradora na quarta. O comunicado esclareceu que haverá um impacto limitado a 10% de sua produção de ferro.
Lidar com os efeitos de um desastre tão gigantesco será uma experiência nova para a empresa de 76 anos, que nasceu como estatal e foi privatizada em 1997. O rompimento da barragem em Mariana teve consequências indiretas para a Vale, que reduziu a exploração de minérios na região, mas essa restrição foi compensada pelo aumento da atividade em outras minas. Assim que um acordo de indenização com o governo foi acertado, as cotações se recuperaram das quedas nos meses anteriores. A experiência internacional mostra um enredo semelhante. O maior acidente ambiental da história dos Estados Unidos custou 65 bilhões de dólares — em indenizações e outros pagamentos — à BP, companhia britânica responsável pelo vazamento de mais de 500 milhões de litros de petróleo no Golfo do México em 2010. O montante foi gasto em trabalho de contenção dos danos do vazamento e indenizações ao poder público, às famílias das vítimas, à indústria da pesca e do turismo dos estados afetados e aos investidores que saíram prejudicados. A explosão da plataforma Deepwater Horizon matou onze trabalhadores e deixou um rastro de contaminação e destruição da vida marítima na região. A BP teve um prejuízo de 3,7 bilhões de dólares naquele ano, mas deu a volta por cima já no exercício seguinte, graças à sua gestão e à valorização do petróleo. As punições à Vale serão pesadas e, espera-se, minimamente educativas. ƒ
Com reportagem de Roberta Paduan
Os heróis na dor
Thalyta de Souza, de 15 anos, passou quinze minutos debatendo-se na lama até ser encontrada, irreconhecível, pelos amigos Jefferson Passos e Michel Guimarães, também moradores do Córrego do Feijão. A cena na qual a jovem emerge do barro nos braços dos dois e é levada por bombeiros em um helicóptero foi registrada por um cinegrafista e correu o mundo. Pouco antes, os dois rapazes haviam resgatado a irmã de Thalyta, Alessandra, de 43 anos, nas margens do lamaçal. Elas moravam juntas havia quatro meses, desde a morte da mãe. Estão internadas, mas se recuperam bem. “O hospital promove reencontros diários, sempre muito emocionantes”, conta José Antônio Soares Pereira, de 46 anos, marido de Alessandra. Mesmo com o salvamento duplo, o rompimento da barragem acabou por se tornar uma tragédia para a família. Lays, a filha de 14 anos de Alessandra e José, estava na mesma casa e desapareceu. Heróis no resgate das irmãs, Jefferson e Michel também vivem o luto. Quando foram em socorro das duas, eles percorriam o lamaçal em busca, respectivamente, de uma irmã, Jussara, ainda não encontrada, e de um irmão, Reinaldo, cujo corpo foi localizado e enterrado na quarta-feira 30. “Ao saber do rompimento da barragem, corri 7 quilômetros para tentar encontrar a Jussara”, conta Jefferson, que é bombeiro hidráulico e está desempregado há cinco anos. “Não me considero herói, mas sinto algum conforto quando penso que, no meio dessa destruição toda, consegui salvar duas vidas.” Há, sim, heróis na dor. Gente como Jefferson e Michel.
Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620
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