Incertezas sobre gastos abalam confiança do mercado e complicam transição
A expectativa de a equipe de Lula conseguir uma rápida solução para a bomba fiscal ruiu frente à dificuldade de estabelecer valores e prioridades
Um aforismo recorrente entre os liberais reza que a confiança é o mais barato dos pacotes de estímulos econômicos. Isso significa que não há melhor incentivo possível para a estabilidade e o crescimento de um país que a segurança de que o comando da economia está em boas e responsáveis mãos. Esse é exatamente um dos grandes desafios para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em especial quando já se sabe que suas promessas eleitorais para a área social não cabem no orçamento preparado pelo governo de Jair Bolsonaro e sob o teto de gastos para 2023.
Nas duas primeiras semanas seguintes à eleição, a equipe de transição do novo governo tem corrido para alcançar tal confiabilidade e buscar alternativas para garantir suas prioridades, sendo a principal delas a manutenção de um Bolsa Família de 600 reais mensais. A possibilidade mais forte de viabilizar o pagamento, que vai custar 52 bilhões de reais além do teto, é aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição, já batizada de PEC da Transição, a qual concederá à nova gestão uma licença para repassar recursos acima do teto de gastos. O valor previsto ainda é pouco preciso e segundo estimativas pode ficar entre 100 bilhões e 200 bilhões de reais. Na equipe de transição, o cálculo gira em torno de 175 bilhões de reais, mas Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central nas gestões anteriores de Lula e nome cotado para assumir o Ministério da Fazenda, afirmou na última semana acreditar que a bomba fiscal estaria mais para a casa dos 400 bilhões de reais. “A percepção do mercado é que algo precisa ser feito, porque há uma questão social grave, mas ao mesmo tempo uma expectativa de déficit fiscal grande”, afirma o economista e consultor financeiro Alvaro Bandeira. “Tem um monte de promessas e contas para serem pagas no ano que vem. O problema fiscal é sério.”
Coordenador do gabinete de transição, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) viu rapidamente a dimensão do problema. Inicialmente, acreditava ser possível já apresentar uma proposta para a questão na terça-feira 8. Percebeu, então, que o assunto seria bem menos trivial. Depois de conversar com Lula, adiou a apresentação para o dia seguinte e, em seguida, adiou de novo. O time de transição encontrou dois problemas principais: o tamanho efetivo do “waiver” — a licença para estourar o teto — e se a PEC seria, de fato, o melhor formato para conseguir a liberação. Além dos 600 reais do Bolsa Família, o governo ainda desejava conceder, no início de 2023, entre diversas propostas, um reajuste do salário mínimo acima da inflação e a correção da tabela do imposto de renda contemplando isenção para quem ganha até 5 000 reais, bem acima dos atuais 1 903 reais. Logo ficou claro que essa última promessa inflacionaria demais a PEC e ela deve ser adiada. Já o pagamento de recurso de 150 reais por criança de até 6 anos para beneficiários do Bolsa Família ganhou prioridade, e tem custo de cerca de 18 bilhões de reais. Há ainda na fila um programa de renegociação de dívidas, a recomposição de verbas no SUS e no Farmácia Popular, e investimentos em habitação e obras não terminadas. “Talvez seja impossível acomodar todas as promessas dentro do orçamento. Precisamos lembrar que tudo isso vira dívida pública”, afirma Luís Eduardo Assis, ex-diretor de política monetária do Banco Central. “Por isso, esse novo governo vai precisar de muita articulação e também elencar o que é prioridade, e negociar caso a caso.”
Nas primeiras reuniões da equipe de transição também se debate se a melhor forma de conseguir espaço fiscal seria mesmo a de uma PEC. Entraram no rol de opções a possibilidade de promulgação de uma medida provisória no início do ano com crédito extraordinário, uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) para remanejar recursos do Auxílio Brasil já previstos por oito meses e ganhar mais tempo para aprovar a PEC, apelar para uma decisão antiga do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o governo precisa garantir uma renda básica independente dos limites de gastos e, por fim, aprovar uma lei retirando os benefícios sociais debaixo do teto. Não está descartada ainda uma solução híbrida entre essas alternativas, mas nenhuma guarda a mesma segurança jurídica de uma PEC.
Em meio ao enrosco orçamentário, o tempo começa a se tornar um inimigo para o futuro governo demonstrar previsibilidade e dar a tão necessária confiança ao mercado, que vê riscos de o estouro ficar muito grande e acabar derivando para despesas permanentes. Em relatório aos investidores, o prestigioso Fundo Verde, de Luis Stuhlberger, alertou que gastos acima dos 200 bilhões de reais seriam muito preocupantes. “A tal da PEC da Transição está se tornando (mais um) trem da alegria brasiliense de crescimento de gastos descontrolados”, apontou a avaliação. Por sua vez, a agência de rating Moody’s divulgou que a atual nota de crédito dada ao Brasil poderia ser rebaixada no caso de um “waiver” de 200 bilhões de reais.
Nesse contexto, a lua de mel entre mercado e Lula azedou rapidamente. Entre sexta-feira 4 e quarta-feira 9 o índice Ibovespa caiu 3,8%, enquanto o dólar se valorizou 2,4%. Na segunda-feira, o clima ficou especialmente ruim depois de rumores de uma pressão de integrantes do PT para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ser indicado como ministro da Fazenda. No dia seguinte, nem o anúncio da escalação dos economistas reconhecidos como os pais do Plano Real Persio Arida e André Lara Resende para o grupo de transição da economia, junto a nomes mais ligados ao PT, conseguiu mudar muito o humor dos investidores. Outra trombada com o mercado aconteceu na quinta-feira pela manhã, quando Lula fez um discurso temerário para seus apoiadores no núcleo de transição no CCBB, em Brasília. Criticou empresários, atacou as privatizações e defendeu gastos em nome do bem-estar da população. Imediatamente, a bolsa em São Paulo despencou e ao meio-dia marcava queda de 2,75%. Sem ministro da Fazenda designado, com dúvidas sobre como as contas serão custeadas no ano que vem e discursos incendiários do presidente eleito, não há confiabilidade que resista.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815