Fugir de modelo ocidental é o segredo de sucesso chinês, diz economista
Para professora da Universidade de Massachussets, país encontrou caminho do desenvolvimento tateando mercados
O que levou a China a deixar de ser um país rural e pobre, em pouca décadas, para se tornar uma potência global ainda é uma pergunta sem respostas definitivas. Para a economista alemã Isabella Weber, 36 anos, parte significativa da resposta está no final da década de 80, com a queda do muro de Berlim. Na imensa maioria dos países socialistas, a abertura da cortina de ferro veio acompanhada de medidas liberais que introduziram rapidamente o antigo bloco soviético na economia global. A exceção foi a China que decidiu resistir ao pacote de abertura de mercado, liberação dos preços, privatizações e políticas de austeridade fiscal. Em vez de mudar os rumos do país radicalmente, o gigante asiático escolheu tatear o capitalismo, em um modelo híbrido ainda pouco compreendido pelo mundo ocidental. Em seu livro, Como a China escapou da terapia de choque” (editora Boitempo), a professora de economia na University of Massachusetts e pesquisadora do Political Economy Research Institute mergulha no passado para explicar o presente. Em visita ao Brasil para lançamento da obra, ela conversou com VEJA, no Rio de Janeiro.
Quais fatores históricos fizeram a China resistir à terapia de choque, como fizeram outros países socialistas, no fim da década de 80? Na década de 1980, os líderes que estavam no poder eram revolucionários de primeira geração que haviam sido reabilitados depois da revolução cultural. Suas primeiras experiências com o capitalismo ocorreram durante a revolução, em condições muito complicadas, com uma quadro de hiperinflação estabelecido. Eles fizeram do mercado uma ferramenta para tentar superar o aumento dos preços e criaram cooperativas de comércio para garantir o fornecimento dos bens mais importantes para a população. Assim, mobilizavam os mercados para estabilizar os preços e para conter a especulação, em caso de alta de preços. Eram pessoas formadas por uma escola marxista que, ao contrário dos líderes do ocidente, não viam a economia de mercado da mesma maneira.
Mas, nessa época, a China não ia muito bem economicamente. Liberar mercados, não soava como uma tentação? As lideranças já não acreditavam que “um grande salto adiante” nos moldes pensados por Mao seria possível porque a estratégia havia fracassado. Mas é importante observar que, do ponto vista da promoção da mudança, a terapia de choque adotava uma uma estratégia semelhante, mas em sentido contrário ao observado até então. Ou seja, fazer um grande pacote de medidas para liberar os preços, privatizar as empresas e promover cortes nos gastos do governo. O caminho escolhido pela China foi diferente: promover mudanças graduais, não necessariamente lentas, em direção à economia de mercado. É como se fossem cruzar um rio, mas tomando cuidado para certificar que as pedras onde pisavam estavam firmes. O medo principal era se afundar na hiperinflação.
No seu livro você mostra que essas discussões foram muito intensas dentro do governo comunista chinês. Por que as pessoas que defendiam a terapia de choque não venceram o debate? No campo político as diferenças entre os dois lados não são tão claras, mas no econômico, sim. Em um canto estavam pessoas de meia idade, pertencentes ao meio intelectual estabelecido nas universidade, que foram expulsos durante a revolução cultural, mas que recuperaram seus cargos. Elas defendiam a ideia de um novo modelo econômico para a China, mais próximo da terapia de choque. De outro, havia pessoas que eram da primeira geração de revolucionários, ao lado de funcionários do governo que passaram a juventude no campo, desenhando política de preços de grãos. Era um sistema de via dupla, em que o governo demandava a produção de alimentos às famílias e elas tinham de plantar e colher sob preços estabelecidos pelo Estado. Se houvesse excedente, porém, elas poderiam vendê-lo livremente. Isso fez com que mercados independentes surgissem na periferia do sistema e possibilitasse ao governo testar esses caminhos. Essa versão intuitiva acabou prevalecendo.
Se a China tivesse escolhido outro caminho teria se tornado essa potência atual? Pessoalmente, acredito que não. É sempre complicado apresentar contra-argumentos, mas, no mínimo, a terapia de choque teria significado um grande risco. Sob nenhum aspecto, na perspectiva dos anos 1980, se imaginaria que as cidades chinesas teriam, no futuro, a pujança que vemos hoje, que seria a grande planta de manufaturas do mundo, ou que ameaçaria a hegemonia americana em campos como a Inteligência Artificial. O meu ponto é que o debate era aberto o suficiente para ir em qualquer direção, mas seguiu no caminho que observamos em função da autoconfiança das lideranças locais em não adotar plenamente um modelo externo. Em vez disso, decidiram desenhar o próprio programa e segui-lo passo a passo, sem solavancos.
Politicamente, há uma relação entre o desenvolvimento chinês e seu sistema de governo autoritário? A história das últimas duas décadas nos ensina que a teoria da modernização, segundo a qual, um país se torna uma democracia liberal ao enriquecer, simplesmente não se sustenta. Não existe uma conexão tão direta entre esse tipo de definição de padrões de sistemas políticos e econômicos. Não à toa, vemos o retorno do autoritarismo na Europa Oriental e na Rússia, que seguiu a terapia do choque e hoje é governada por um autocrata. A China se desenvolveu muito mais adotando outro tipo de política e tampouco é uma democracia.
Afinal, o modelo econômico chinês poderia ser replicado no ocidente? É preciso notar que, em alguns campos hoje, a China é mais aberta a mercados do que Alemanha ou Estados Unidos. Há competição para tudo, você pede um Uber e tem 17 motoristas disputando aquela chamada. Mas essa é uma lição que não deve ser vista sem prestarmos atenção em outra: o uso dos mercados como instrumentos para desenvolvimento. A experiência chinesa mostra que não é necessário apenas introduzir novos mercados, esperando que eles funcionem por si só. É preciso orientá-los. Se fossemos pensar em uma metáfora, a abordagem chinesa se aproxima mais de um jardim, em que as plantas precisam ser regadas e podadas para crescerem do que um parque, em que há guardas regulando quem pode ou não entrar naquele espaço e quais são as regras ali praticadas