Como a iniciativa privada pode contribuir para capacitação profissional
Criado há 35 anos, o programa Formare tem como diferencial o oferecimento de aulas dentro das empresas, ministradas pelos próprios funcionários

A conexão entre programas de educação profissional e a agenda ESG (sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de governança) ainda é pouco explorada: apenas 22% das empresas adotam essas políticas para fortalecer seu pilar social, segundo pesquisa do Espro (Ensino Social Profissionalizante). Ainda assim, a inclusão de profissionais no mercado formal é crucial em um país onde milhões de jovens aguardam capacitação. O IBGE aponta que 21,2% dos brasileiros de 15 a 19 anos — um total de 10,3 milhões — não estudam nem trabalham. Entre os 10% mais pobres, o índice é maior: quase metade (49,3%) está fora do mercado e das instituições de ensino. Para enfrentar esse cenário, uma iniciativa bem-sucedida se destaca. Criado há 35 anos pela Fundação Iochpe, o curso Formare já mudou a trajetória de milhares de jovens com renda média de até um salário mínimo, oferecendo capacitação e acesso ao mercado de trabalho formal.

O modelo do curso, que já formou 26 000 profissionais, é adotado por 45 empresas, incluindo multinacionais como a companhia francesa de cosméticos L’Oréal e a montadora alemã Volkswagen Caminhões e Ônibus. Seu grande diferencial é oferecer aulas teóricas e práticas dentro das empresas, ministradas pelos próprios funcionários. A trajetória de Rayane Araújo Morais da Silva, de 26 anos, ilustra o impacto do Formare. Em 2016, aos 17 anos, com o pai desempregado e a mãe na informalidade, ela soube das inscrições para o curso de operadora de máquina. “A situação era difícil e eu precisava ajudar financeiramente”, conta. Após o curso, foi contratada como estagiária, passou pela área financeira, migrou para TI e hoje é gerente de Service Delivery da L’Oréal no escritório corporativo, em São Paulo. “O Formare abriu portas para mim”, diz Rayane. Primeira da família a se formar na faculdade, ela fez questão de atuar como professora no programa. Para a diretora de RH da L’Oréal Brasil, Daniela Nishimoto, a história de Rayane demonstra como uma oportunidade pode mudar a vida de um jovem. “Quando ela chegou, percebemos que só precisava de uma chance para agarrar tudo o que oferecêssemos”, diz Nishimoto.
Inspirado no modelo alemão de formação profissional, o Formare alinha ensino às necessidades do mercado, abordando desafios da população de baixa renda. O curso dura um ano, tem certificação do Ministério da Educação e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e vai além da qualificação técnica. Oferece, por exemplo, experiência real, dentro da empresa. “É pedagógico para o jovem ir todos os dias à companhia e entender que esse é um espaço para ele”, diz Claudio dos Anjos, presidente da Fundação Iochpe.
Uma das principais barreiras para a entrada de jovens em situação de vulnerabilidade no mercado formal está na falta de referências profissionais. Sem familiares nem amigos inseridos nesse ambiente, muitos não sabem a quem recorrer. “Os jovens se inspiram naquilo que conhecem”, diz Claudio dos Anjos. Por isso, no Formare, os funcionários das empresas parceiras são capacitados como professores. Para a diretora de RH da L’Oréal, envolver os empregados na jornada de transformação é um dos maiores atributos do programa. “É mais do que ensinar uma disciplina”, diz Nishimoto. “Os funcionários oferecem novas perspectivas de vida, e os jovens levam essa visão para suas famílias e amigos.”

Aluna da turma de 2024, Letícia Rufino da Silva, de 18 anos, filha de ajudante de pedreiro e costureira, nunca havia pensado em trabalhar na indústria. “Aqui na L’Oréal, me interessei por química, algo que nem considerava”, afirma. “Agora, sonho estudar engenharia química.” Ela já está matriculada em um curso técnico de gestão de produção e pretende levar a carreira adiante. Outro aluno do Formare na L’Oréal é Djavan da Silva Santos Júnior, 18 anos. “Um jovem como eu tem poucas oportunidades”, diz ele. “Esse curso me deu uma e estou dando meu máximo.” Apaixonado por tecnologia, planeja conquistar uma vaga e cursar engenharia de software.
Parceira do Formare há dez anos, a L’Oréal vê a iniciativa ampliar o engajamento na empresa, atraindo setenta funcionários educadores anualmente. “Vamos para a 11ª turma, esse programa nos enche de orgulho”, diz Nishimoto. A taxa de contratação dos alunos na empresa é de 85%. De fato, o programa traz frutos. Uma pesquisa da Fundação Iochpe mostra que 90% dos ex-alunos continuam estudando e 89% encontram um emprego formal logo após o curso. O Formare também fortalece a retenção de talentos: 90% dos educadores voluntários afirmam se sentir agentes de mudança para uma sociedade mais justa. “Eles passam a ter mais orgulho da empresa”, diz Claudio dos Anjos.
Na fábrica da Volkswagen Caminhões e Ônibus em Resende (RJ), o Formare é oferecido há 25 anos. Com 120 funcionários educadores, já formou cerca de 300 profissionais, contratando 89% deles. “Tentamos absorver 100%”, afirma Livia Simões, vice-presidente de Pessoas, Cultura e Sustentabilidade da empresa. “É uma experiência de sucesso.” No ano passado, a Volkswagen levou o Formare para sua fábrica em Querétaro, no México, com certificação da Universidade Tecnológica de San Luis Potosí. “O Formare está alinhado à nossa estratégia, focada em educação e impacto regional”, diz Simões.

O custo de implantação do Formare é relativamente baixo diante do impacto que gera, o que se deve à sua capacidade de adaptar o currículo às necessidades das empresas. Por 86 000 reais, a Fundação Iochpe realiza o diagnóstico da companhia, desenvolve a grade curricular e forma os educadores voluntários. Após a implantação, a empresa paga 7 300 reais por mês por turma (de dez a 25 alunos) e cobre os benefícios dos jovens, como bolsa-auxílio de pelo menos meio salário mínimo. Como afirma o presidente da Fundação Iochpe, o maior ativo do Brasil é a sua juventude. “Só precisamos dar a essas pessoas uma chance para que desenvolvam o seu potencial”, diz. Oferecer uma oportunidade significa, acima de tudo, investir no futuro do país.
Publicado em VEJA, fevereiro de 2025, edição VEJA Negócios nº 11