Evitar o disparo do desemprego está no topo das prioridades do governo
Ainda são frágeis as propostas para conter o problema, que demonstra ser bem mais severo do que o retratado nas estatísticas oficiais
O ministro da Economia, Paulo Guedes, de tempos em tempos, declara que o emprego é o melhor programa social que pode existir. É bom para o trabalhador, pois garante a sua renda, e é bom para o governo, que não precisa queimar recursos para prover os meios de subsistência de parte da população. Em meio à crise da pandemia, o desemprego foi a primeira grande preocupação econômica, à medida que ficou claro que o nível de atividade sofreria um súbito e forte golpe com a necessidade de isolamento social. Agora, no começo do segundo semestre do ano, alguns dados mostraram que o pior ficou para trás, a partir da gradual reabertura da economia. Mas, como acontece com diversos indicadores econômicos nestes tempos atípicos, também os dados relativos à empregabilidade trazem contradições. Recentemente foram comemoradas as 390 000 vagas formais criadas em julho e agosto, depois de quatro meses de registros negativos e da diminuição de mais de 1,5 milhão de postos. Mas, ao mesmo tempo, o IBGE divulgou que o índice de desemprego disparou em julho e atingiu 13,8% da população, o equivalente a 13,1 milhões de pessoas — superando os piores momentos da crise entre 2014 e 2016.
Pode parecer estranho que o desemprego suba quando o número de vagas formais volta a crescer. A pandemia, no entanto, criou um fenômeno não captado pelos dados oficiais. Segundo a metodologia amplamente adotada em todo mundo, só entra nos índices de desemprego quem procura trabalho. Isso distorce a fotografia feita durante a pandemia pelo IBGE, já que, durante o isolamento social, muita gente evitava sair às ruas para procurar trabalho por questões de saúde ou pelo fato de muitas empresas estarem fechadas. O resultado é que o desemprego real é bem diferente do captado pelas estatísticas oficiais. O banco americano Goldman Sachs estima que, se a busca de trabalho se mantivesse estável nos tempos de quarentena, o índice teria batido em 24,1% em julho, contra os 11,5% registrados em fevereiro, no início da pandemia. Isso significa mais de 23 milhões de pessoas sem ocupação.
A partir desse cenário, a recuperação do trabalho, então, tende a ser mais lenta, e o paradoxo das cifras de criação de vagas e o alto desemprego deve continuar por mais algum tempo. “Há uma grande parcela da população que ficou fora do mercado de trabalho e está voltando a procurar emprego agora”, afirma Daniel Duque, pesquisador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Além disso, o porcentual de pessoas subutilizadas subiu para quase um terço da população, um índice que inclui também quem está empregado em meio período. “Ainda estamos longe de voltar ao patamar de antes da pandemia, que já era bem ruim, com 5 milhões de pessoas sem ocupação há mais de um ano”, diz o diretor de pesquisa econômica do Goldman Sachs para a América Latina, Alberto Ramos. “O desemprego atual é um problema econômico que se tornou político e gera instabilidade social.”
O governo sabe que a sombra do desemprego sobre o país é uma grande ameaça à recuperação em V tão desejada por Paulo Guedes. E a situação poderia ser muito pior se medidas rápidas não tivessem sido adotadas prontamente na eclosão da crise sanitária. Com o pagamento do auxílio emergencial às famílias de baixa renda, o governo protegeu os trabalhadores informais que perderam os meios de se sustentar. Da mesma forma foi ágil ao evitar mais perdas no mercado formal, possibilitando a redução de jornadas de trabalho e a suspensão de contratos, o que preservou 11 milhões de vagas. A essas ações foram creditadas uma queda menor da atividade e uma retomada do consumo mais rápida do que o projetado. A estratégia recebeu elogios do Fundo Monetário Internacional (FMI), que revisou as suas previsões para o PIB brasileiro em 2020 de queda de 9% para 5,8%. Essas medidas, porém, têm data para acabar: 31 de dezembro. “O governo foi ágil e inteligente no início da pandemia. Mas demorou a dar o passo seguinte. Com o fim dos auxílios, há o risco de o desemprego aumentar. É uma situação aflitiva”, definiu José Pastore, professor de relações do trabalho da USP.
Tal situação explica as batidas de cabeça do governo nas últimas semanas em torno da montagem do novo modelo de amparo socioeconômico, até agora conhecido como Renda Brasil, uma espécie de Bolsa Família fortalecido. O programa tem sido tratado como a solução para evitar que ocorra um “degrau” de renda quando o auxílio emergencial deixar de ser pago. A montagem dessa equação vem sendo complexa, pois o presidente Jair Bolsonaro já rechaçou as propostas de substituir programas sociais e desindexar aumentos do salário mínimo e da aposentadoria, uma forma de abrir espaço no Orçamento sem desrespeitar a lei do teto de gastos. Também naufragou a tentativa de lastrear o programa com recursos do Fundeb, o fundo que financia a educação, e recursos destinados ao pagamento de precatórios. A proposta foi muito mal recebida pelo mercado. Na segunda 5, Guedes falou, depois de um jantar de reconciliação com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que, se houvesse uma segunda onda de Covid-19, o orçamento de guerra poderia continuar em 2021, e ser incluído na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do pacto federativo. A medida possibilitaria estender os gastos extraordinários. Nos dias seguintes, o mercado voltou a reagir mal à perspectiva de os gastos extraordinários avançarem além do prazo estabelecido, e, na quarta-feira 7, Guedes negou qualquer intenção de estender o orçamento de guerra ou o auxílio emergencial. Apesar das marchas e contramarchas, o esforço da equipe econômica em montar o programa sem causar o descontrole das contas indica uma rara maturidade na gestão orçamentária — um fato notável quando se leva em conta a ebulição política do país. Em outros tempos, o governo incluiria o programa de reforço de renda no Orçamento e depois se preocuparia de onde viriam os recursos para financiá-lo.
O Brasil chegou à pandemia numa situação fiscal preocupante, e pode sair dela com uma dívida em relação ao PIB de quase 100%. Apenas com o financiamento do auxílio emergencial, o governo gastou 212,8 bilhões reais entre abril e agosto. A extensão do benefício até o fim do ano, com um corte de 600 reais para 300 reais por pagamento, vai exigir mais 67 bilhões entre setembro e dezembro. É uma parte considerável do déficit primário do setor público, que, segundo o Tesouro, deve ser de 787,4 bilhões de reais em 2020, considerando-se apenas o governo federal. Ou seja, o programa é custoso. E pior: mesmo que se estenda por 2021 e ajude a manter o consumo aquecido, pode não alcançar o efeito desejado. Segundo a gestora de recursos Asa Investments, o programa não foi desenhado para amparar empresas e negócios do setor de serviços, exatamente o que mais emprega e o mais afetado pela política de isolamento social. “O impacto maior do auxílio aconteceu no Norte e no Nordeste, regiões onde a presença dos serviços na economia é menor”, diz Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro e diretor da gestora. “Já para as pessoas de classes mais altas no Sudeste, o problema maior não foi uma queda de renda, e sim a falta de segurança para consumir. Elas só vão voltar a gastar com restaurantes e cinemas quando a pandemia estiver resolvida e não tiverem mais o receio de que podem perder o emprego.”
Para grande parte dos economistas, a preocupação do governo deveria estar em ajudar a economia a retomar o dinamismo através das reformas que ataquem os problemas estruturais e a situação fiscal, mais do que estimular o consumo por meio de programas de garantia de renda. O risco dessa estratégia é aumentar a percepção de risco fiscal, criando o efeito inverso do almejado. Acabaria por afugentar investimentos nos setores produtivos e transformaria o que por enquanto se desenha como perspectiva sombria em crise aguda.
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708