Os desafios e oportunidades para quem empreende na China
Companhias nacionais enfrentam percalços para se firmar na potência asiática — mas tudo compensa quando se trata do mercado mais pujante do mundo
Há mais de 700 anos, o mercador veneziano Marco Polo descreveu com riqueza de detalhes — e, dizem os historiadores, um tanto de fantasia — suas viagens pelo Oriente em O Livro das Maravilhas. É o relato mais antigo de que se tem conhecimento de um ocidental sobre a Ásia, e acredita-se até que tenha sido inspirada nele a expressão “negócio da China”. Não existe registro de quem foi o primeiro brasileiro a encarar a jornada até o outro lado do planeta, mas hoje o Itamaraty estima que cerca de 16 000 compatriotas tenham escolhido a segunda maior potência econômica do mundo como lar. E uma parte deles fez isso com o mesmo objetivo que o veneziano tinha em 1271: fazer negócios na China. Se ele buscava porcelana, seda e joias, os brasileiros estão lá para construir fábricas, produzir alimentos e, tal e qual antigamente, importar e exportar toda sorte de produtos.
Já se instalaram por lá gigantes do porte da Vale, Embraer, Suzano — e também empreendedores individuais que abriram suas próprias companhias para fazer a vida na terra de Xi Jinping. “Não é fácil encarar um país de língua e hábitos estranhos a nós. Passando essas barreiras, porém, encontramos uma logística, uma tributação, uma abundância de fornecedores e um mercado que não existem em nenhum outro lugar”, atesta Henry Osvald, fundador do escritório de engenharia e suprimentos Simerx, em Xangai, e presidente do Foro Brasil-China.
Exemplo claro das dificuldades, e também das vantagens, de fincar os pés na China vem da fabricante de motores elétricos Weg. Fundada em 1961 em Jaraguá do Sul (SC), a companhia chegou à Ásia em novembro de 2004, quando adquiriu uma fábrica estatal na cidade de Nantong, a cerca de 100 quilômetros de Xangai. Como empresa pública de um país comunista, havia para ela uma prioridade maior do que o lucro: empregar chineses. Sua produtividade era baixíssima, e a falta de funcionários que falassem inglês tornou a implantação de processos mais eficientes por parte dos brasileiros — que nada falavam de mandarim — impossível. A solução foi importar daqui jovens recém-formados fluentes no idioma local para que assim servissem de intérpretes entre a administração e a mão de obra. O problema é que a rotatividade era muito alta, dada a dificuldade da vida na região. A Weg não abre seus números, mas fontes do mercado garantem que ela enterrou 15 milhões de dólares no início da empreitada, sem nenhum resultado, e outros 45 milhões até conseguir sair do vermelho, em 2010.
Com o desenvolvimento dos trainees, que se transformaram em executivos tarimbados, a introdução do ensino do inglês a todos os funcionários e também um enorme investimento na modernização do parque, a companhia finalmente engrenou. Construiu do zero a segunda unidade, em 2015, adquiriu a terceira no ano seguinte e acaba de inaugurar a sua quarta fábrica em território chinês (no caso, voltada para a construção de robôs autômatos). A Weg tem hoje a maior operação de uma empresa brasileira na China, com 2 300 funcionários e faturamento anual de 175 milhões de dólares. “A curva de aprendizado é demorada, porque tudo é diferente: das normas de segurança à maneira de fazer negócio com os clientes. No entanto, a persistência compensa”, afirma Alberto Kuba, diretor da empresa em solo chinês.
O que vale para as grandes companhias vale também para os pequenos empreendedores. O empresário gaúcho Eduardo Ponticelli, por exemplo, chegou a Xangai em 2006 para exportar produtos de plástico baratos para o Brasil. Na época, o custo da mão de obra e da matéria-prima locais era tão mais baixo do que no Ocidente que qualquer mercadoria que não exigisse tecnologia complexa trazia lucro para quem se aventurasse por lá. Com o tempo, a China começou a se sofisticar. Cadeiras, pentes e borrifadores encareceram e perderam mercado. O aprendizado de Ponticelli, contudo, o propeliu para seu próximo passo: mediar a importação e exportação de equipamento para a cadeia de fornecedores da Petrobras. O empreendimento floresceu enquanto durou o boom do óleo e do gás, entretanto sucumbiu junto com o setor, em 2014. Foi aí que Ponticelli teve sua grande sacada: para que exportar para o Brasil, se ele podia produzir para o gigantesco mercado interno de 1,4 bilhão de chineses? Achou um sócio local, registrou como sua marca parte de seu sobrenome ao contrário — Illec, ele descobriu no cartório, significa “cume dourado” em mandarim — e, com a ajuda de 22 funcionários terceirizados, produz mais de 2 toneladas mensais de linguiça de porco para restaurantes e supermercados da região de Xangai. “O que me ajudou mais, além de falar a língua, foi ter aprendido as necessidades do mercado daqui: é tradição local comer linguiça em casa no inverno, e no verão eu vendo mais nos bares ocidentais. Estou crescendo consistentemente desde que comecei”, diz o gaúcho.
Existem muitas razões para que a China seja um país tão propenso ao empreendedorismo. Duas delas, no entanto, saltam aos olhos — especialmente quando se faz uma comparação com o Brasil. A primeira é a logística. Três dos quatro maiores portos do globo estão localizadas na potência asiática. Sua malha ferroviária só perde em extensão para a dos Estados Unidos, mas a posição geográfica do país e seus investimentos na Nova Rota da Seda permitem, atualmente, que cargas sejam levadas de trem à Europa e a todo o continente asiático — no total, a 5 bilhões de pessoas. Enquanto um frete de Manaus a São Paulo demora duas semanas e custa 20 000 reais, o transporte entre duas cidades chinesas com a mesma distância dura seis dias, a 500 dólares (cerca de 2 000 reais). Detalhe: com um seguro baratíssimo, pois o risco de roubo de carga é zero. “Só a facilidade e o preço do transporte de mercadorias na China já fazem, sozinhos, valer a pena a exportação de tecidos daqui para o mercado brasileiro”, analisa a empresária gaúcha Mariel Sambucetti, que começou organizando a importação de roupas e tecidos chineses no Brasil e hoje comanda, de Xangai, uma companhia de exportação.
A segunda razão fundamental do bom ambiente de negócios do antigo Império do Meio — ou do Centro, dependendo de como se faça a tradução, porém sempre com o significado de “centro do mundo” — é a concorrência. Enquanto o Brasil se ocupava de tentar construir os chamados “campeões nacionais”, ajudando e até financiando megafusões com o intuito de dar escala a empresas que acabaram por dominar seus respectivos mercados, a China fez exatamente o inverso. Pulverizou sua indústria entre companhias menores e deixou que competissem entre si. Enquanto o empresário brasileiro em busca de crédito tem 118 opções de bancos aos quais recorrer — e os cinco maiores concentram cerca de 85% dos empréstimos —, o chinês dispõe de mais de 4 000 instituições financeiras. Se a fábrica de autopeças da Marcopolo na cidade de Jiangyin, no leste do país, pode fazer leilão entre mais de 3 000 fornecedores de chapas de aço, sua unidade em Xerém, no Rio de Janeiro, até por questões de logística, fica na mão de três siderúrgicas. A situação é semelhante em todos os outros setores. “É tão mais fácil e barato que a China tornou o empreendedor preguiçoso: para que investir na construção de uma fábrica em qualquer outro lugar se você pode simplesmente mandar fazer aqui?”, pondera Osvald, da Simerx.
Para ajudar empresários a explorar todas essas vantagens — e evitar as armadilhas —, o governador de São Paulo, João Doria, inaugurou em agosto um escritório comercial nos arredores de Xangai que oferecerá um espaço e consultoria a empreendedores brasileiros para que deem seus primeiros passos no país. O órgão será dirigido por José Mário Moccia Antunes, ex-diretor da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) na capital chinesa. “Nosso objetivo é minimizar os erros dos empresários paulistas e brasileiros nesse mercado e servir como base para eles”, explica ele. Que a iniciativa seja um incentivo para que cada vez mais brasileiros sigam o exemplo de Marco Polo e façam negócios da China.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650