‘É preciso ser um inconformado’, diz Laércio Cosentino, fundador da Totvs
Ele conta como, com apenas 6 000 dólares, criou a maior empresa de tecnologia do país
Estar no lugar certo e na hora certa faz toda a diferença na vida de um empreendedor. Quando passei na faculdade de engenharia na Universidade de São Paulo, no fim dos anos 70, o mercado brasileiro de tecnologia era um enorme campo a ser explorado. Procurei emprego assim que entrei no curso e logo surgiu a oportunidade de trabalhar na Siga, empresa especializada em tecnologia da informação. Comecei como estagiário e em quatro anos era diretor. Pouco depois, junto com o fundador da Siga, criei a Microsiga, que se dedicava ao desenvolvimento de softwares de gestão empresarial. Naquele período, a tecnologia da informação era incipiente no Brasil. Ainda estavam nascendo os primeiros microcomputadores, antecessores dos PCs. Eu estava no melhor lugar possível, e pude ver de perto o nascedouro da tecnologia que mudou a nossa vida.
Foi uma enorme oportunidade. Naquela época, falar em computação significava trabalhar com aparelhos enormes. Além disso, apenas grandes empresas tinham acesso à tecnologia da informação, que era muito cara. Lembro que Bill Gates disse, com imensa visão de futuro, que um dia todos os lares teriam PCs. Eu pensei que, se cada casa tivesse um computador, as empresas teriam centenas de máquinas. Isso, como se sabe, de fato ocorreu. A Totvs, que surgiu depois da Microsiga, ocupou esse espaço.
Não é fácil empreender no Brasil. Tive de escrever livros e desenvolver o mercado antes de construir a Totvs. O cenário melhorou muito, mas ainda há desafios. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, existe um déficit de 250 000 empregos no setor. Por deficiências de formação, as empresas de tecnologia não conseguem preencher as vagas. Atualmente, apenas 20% de quem termina o ensino médio tem acesso à faculdade. As escolas técnicas poderiam absorver parte desses 80% e treiná-los para o mercado.
A boa notícia é que existem oportunidades financeiras para quem deseja empreender. Há no Brasil um capital ávido por investir em boas ideias, sobretudo na transformação digital. Quando eu fundei a Totvs, com apenas 6 000 dólares, não era bem assim. O acesso ao capital era complexo e restrito. Felizmente, o cenário mudou. Mesmo com os obstáculos que encontrei, foi emocionante construir uma empresa que hoje fatura 3 bilhões de reais por ano e tem valor de mercado de quase 20 bilhões de reais. Espero ver muitos brasileiros seguir o mesmo caminho.
O que posso trazer de ensinamentos para o empreendedor? Ele precisa, por natureza, ser inconformado, ser alguém que busca soluções e aponta — ou cria — caminhos, como eu criei. O brasileiro, até pelo cenário de adversidades que permeia a nossa história, sempre demonstrou que tem o empreendedorismo em seu DNA. De certa forma, a realidade brasileira impulsiona a inovação, pois existe muito espaço para melhoria em diversas frentes. E isso ficou evidenciado durante a pandemia, não apenas na tecnologia, mas em múltiplos setores. Desde o pequeno restaurante que precisou se reinventar para continuar funcionando até as empresas de saúde, educação, turismo e tantos outros negócios. Todos precisaram ser ágeis para contornar os problemas, resistir e mudar a sua história.
Agora, precisamos avançar com as reformas, pois elas impulsionarão a economia e devem alavancar ainda mais o empreendedorismo. Embora a veia empreendedora do brasileiro tenha sido fundamental para atravessarmos o período de pandemia, precisamos de uma agenda clara para vencer o momento difícil. Isso só vai ocorrer se dermos trégua nas rivalidades políticas e abraçarmos objetivos comuns. O Brasil precisa vencer esse grande desafio.
Laércio Cosentino em depoimento dado a Sabrina Brito
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742