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Em um ano de crise nos estados, episódios como a greve dos caminhoneiros mostram que o gigantismo estatal ainda dita as regras no país

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h03 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00

selo-retrospectiva-2018Ingrata é a tarefa de fazer projeções sobre a economia de um país. Interferem no crescimento do PIB o clima, a cotação do dólar, a saúde econômica dos vizinhos (e também a da China, do outro lado do mundo), as leis aprovadas no Congresso… A lista é interminável. No começo de 2018, havia um quase consenso de que o Brasil fecharia o ano respirando ares de retomada, com uma alta do PIB em torno de 2,7%. Pura ilusão. Ninguém imaginava que, entre o fim de maio e o início de junho, caminhoneiros deixariam o país de joelhos por onze dias em uma greve que entrou para a história: supermercados ficaram desabastecidos, bombas secaram nos postos de gasolina, o transporte público parou, fábricas interromperam a produção (por falta de insumos ou por impossibilidade de escoar as mercadorias), leite, carnes e vegetais apodreceram antes de chegar ao consumidor. Para encerrar o caos, o governo Temer rendeu-se às exigências dos grevistas e meteu a mão do Estado na economia. Tabelou os preços do frete privado e cortou o preço do diesel com subsídios bancados pelo Tesouro. A conta: 13,5 bilhões de reais, e o valor só não foi mais alto porque o preço do petróleo começou a recuar nos últimos meses. A confiança de empresários e consumidores despencou. Diante desse cenário, as projeções do PIB para o ano, tanto do governo quanto do setor privado, caíram e agora apontam para um modesto crescimento de 1,3%.

Embraer
O BRASIL VOOU – Embraer: a privatização multiplicou o lucro. A venda para a Boeing pode ser nova alavanca, mas há resistência (Germano Lüders/VEJA)

A greve dos caminhoneiros foi o principal episódio de 2018 a expor a luta travada há décadas no Brasil, mas particularmente acentuada neste ano, entre os defensores de um Estado que intervém em muitos setores da economia e seus opositores, que advogam por mais liberdade para que “a mão invisível do mercado” tome as rédeas da atividade econômica. O caso é especialmente emblemático porque encapsula os problemas do gigantismo da máquina pública desde sua causa até seu desfecho. O governo Dilma buscou estimular a indústria de caminhões, anos atrás, concedendo amplos subsídios à compra de novos modelos. O excesso de oferta no mercado ajudou a derrubar o preço do frete, para desespero dos motoristas e das transportadoras. Da mesma forma, o governo Dilma tentou segurar a inflação intervindo no valor dos combustíveis nos postos de abastecimento. A Petrobras amargou o prejuízo por anos a fio. Quando a política foi interrompida, os preços naturalmente subiram — empurrados também pela alta do petróleo no mercado internacional. “Culpa da Petrobras”, bradaram os caminhoneiros, junto com políticos e industriais que pegaram carona no populismo por interesse próprio. Como se a petrolífera pudesse sobreviver deficitária, repita-se, por anos a fio.

A disputa entre os defensores do Estado mínimo e os da intervenção é muito mais ampla do que os subsídios. Ela invade o mundo dos negócios, por exemplo. Janeiro marcou o avanço das conversas para a venda da fabricante brasileira de aviões Embraer à concorrente Boeing, baseada em Chicago. O Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, no interior de São Paulo, onde fica a sede da companhia, opôs-se a qualquer proposta. Em dado momento, um juiz de primeira instância, atendendo a uma ação popular de deputados do PT, concedeu liminar suspendendo as negociações. Embora só detenha 5,4% das ações via BNDES, o governo tem o poder de veto a toda negociação que envolva o controle da empresa. A decisão judicial foi derrubada e, em dezembro, um acordo definitivo foi alcançado para que o gigante americano assuma o controle da divisão de aeronaves comerciais da Embraer em troca de 4,2 bilhões de dólares.

Greve de policiais no Rio Grande do Norte
DESEQUILÍBRIO – Greve de policiais no Rio Grande do Norte, outro exemplo de estado em crise: no reino da má gestão (Ney Douglas/VEJA)
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A estratégica área de defesa da companhia brasileira entrará no acordo por meio do avião militar KC-390, mas o desejo dos compradores é estreitar também esse relacionamento no futuro, segundo afirmou a VEJA Dennis Muilenburg, CEO da Boeing, em setembro: “Vejo oportunidades para trabalhar em conjunto em uma linha de produtos de defesa mais ampla ao longo do tempo e acredito que o KC-390 pode ser o primeiro grande exemplo de como as duas empresas podem ser bem-sucedidas juntas”.

A expectativa é que o acordo seja aprovado pelo novo governo, dado o entendimento do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, de que não cabe ao Estado colocar amarras ao desenvolvimento das estatais. Ele tem uma base sólida para defender a ideia. A Embraer é um exemplo de privatização que deu certo. Quando foi vendida pela União, em 1994, a companhia tinha uma dívida bilionária e corria o risco de ir à falência, o que deixaria seus 6 000 funcionários sem emprego. Desde então, ela se transformou na terceira maior fabricante de aviões comerciais do mundo (atrás da Boeing e da europeia Airbus) e triplicou o quadro de empregados, e tem hoje um faturamento vinte vezes maior. Na época, sindicalistas e políticos tentaram melar a transação, sob o argumento de que se tratava de uma joia nacional. Os mesmos grupos se opõem ao negócio hoje, alegando agora que a empresa é estratégica — um pensamento que não é estranho ao ideário do Jair Bolsonaro nacionalista que, diz ele, agora se transmutou em liberal.

Paulo Guedes
SUPERMINISTRO – Paulo Guedes: o economista foi escalado pelo presidente Bolsonaro para diminuir o Estado brasileiro (Sergio Moraes/Reuters)
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É muito fácil cair na armadilha de conceder vantagens do Estado a grupos que se organizem para pressionar os políticos. A sociedade como um todo, desorganizada, pulverizada e heterogênea, não consegue se contrapor no período entre as eleições, ocupada que está com a própria vida. Como o Estado generoso não tem mais recursos para bancar tantas benesses para tantos segmentos, alguns perpetuam seus privilégios, enquanto os demais — a maior parte da população — ficam à deriva. O agravamento da crise dos estados jogou parte dos brasileiros em uma rotina desoladora de precariedade em serviços essenciais, como o atendimento básico de saúde. No início do ano, em fevereiro, Temer teve de fazer uma intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, diante da incapacidade local de pagar salários de policiais para combater o crime. Mais recentemente, foi a vez de Roraima sucumbir ao caos devido à falta de recursos para pagar agentes penitenciários e policiais. A pedido da então governadora, Suely Campos, e da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, Temer anunciou uma inédita intervenção total em um estado. Foi a única maneira de transferir recursos para pagar salários sem desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Nos dois casos, houve o comprometimento das receitas acima do permitido com o pagamento de servidores na ativa e de aposentados, o que se traduz em escassez de recursos para hospitais, escolas e segurança pública. O problema atinge outros estados, e a União exige que cortem gastos antes de ajudá-los, mas os governadores, como sempre, resistem.

Da mesma forma, a elite do funcionalismo público parece não se preocupar com o problema. Também em 2018 juízes e procuradores se mantiveram impassíveis ante a falência do Estado, insistindo em reivindicar — e conseguindo — aumentos salariais e preservar penduricalhos como o auxílio-moradia. A população parece ter se cansado disso. Em sua campanha, Bolsonaro ficou ocupado com um discurso insultuoso às minorias e pouco falou do tamanho do Estado, deixando o assunto para o seu Posto Ipiranga. Mas o país espera que os planos para encolher o Estado saiam do papel e que as projeções para o PIB de 2019, em torno de 2,5%, acertem no alvo desta vez.

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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