Coronavírus: crise econômica se anuncia tão grave quanto a de 2008
Mesmo com as contas comprometidas, o governo tenta dar resposta à população
Desde que foi deflagrada a crise financeira de 2008, pairou uma dúvida entre brasileiros atentos à economia mundial: por que investidores aceitavam comprar títulos de países desenvolvidos que “pagavam” juros negativos? Enquanto o Brasil pagava lesivos 14% ao ano em juros no período de recuperação global que se seguiu dois anos após a quebra do banco Lehman Brothers, Estados Unidos, Japão e Reino Unido tinham taxas soberanas menores que seus índices de inflação e, na prática, cobravam de quem aceitava emprestar dinheiro. A justificativa estava na confiança depositada nos governos: se o mundo quebrar, esses serão os últimos a dar um calote. Assim, endividaram-se e puderam resgatar a atividade econômica do abismo. Pois, eis que na crise seguinte, a que vivemos agora, causada pela pandemia de coronavírus, o Brasil entrou para o clube dos países que pagam juros negativos. Na quarta-feira 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central executou mais um corte na taxa Selic, a nossa taxa básica de juros, para 3,75%. Com o índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) marcando uma inflação de 4,01% nos últimos doze meses, pela primeira vez desde a estabilização da moeda, marcada pelo Plano Real, há 26 anos, o governo cobrará a quem lhe empresta dinheiro. A diferença, contudo, é que a economia brasileira não é de ponta e sólida como a dessas nações. A crise do coronavírus lançou o país num campo de incertezas econômicas tão grandes quanto as sanitárias.
O exercício praticado pelos economistas de tentar prever o futuro é cada vez mais estéril. De uma semana para outra, as estimativas de crescimento do Brasil foram jogadas ladeira abaixo e agora, num cenário otimista, apontam para a estagnação. Pura especulação. Neste momento, é impossível ter a certeza do impacto e do prazo da crise. “A cada nova variável, a cada mês que passar, teremos um quadro completamente diferente”, afirma o economista José Pastore. O que de fato está dado, contudo, é que o crescimento, que no começo do ano era projetado para ser superior a 2,5%, é comparável agora a um sonho murcho na vitrine de uma padaria às moscas por medo da pandemia. Os governos estaduais apertaram o cinto e decretaram o fechamento de shopping centers, academias, bares, restaurantes, centros de convenções — ou seja, toda uma cadeia de serviços sofrerá nos próximos 45 dias a maior perda de receita que já terão registrado.
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Clique e AssineNos grandes centros urbanos, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, nesta semana, já era possível notar um gigantesco vazio. Com escolas paradas, negócios fechados e um crescente número de empresas adotando o sistema de teletrabalho — o famoso home office —, as cidades parecem experimentar um permanente feriadão. É impossível não sentir o gosto amargo da ociosidade da economia. Quem está no mercado formal de trabalho ainda possui algum respaldo das leis trabalhistas para garantir renda nos próximos meses. Não é assim para 42% da população economicamente ativa, que vive na informalidade. “O governo está enfrentando uma situação inédita, uma crise inusitada causada por uma doença”, avalia Ernesto Lozardo, ex-presidente do Ipea e professor da Fundação Getulio Vargas. “É preciso preservar um poder de compra mínimo às pessoas. Caso contrário, a falência do sistema financeiro poderá levar a mais mortes do que o colapso da saúde pública.”
É o que teme o casal Maurício Almeida e Alexandra Araújo, ambos de 43 anos. Todos os dias, comercializavam na região da 25 de Março, centro do comércio popular de São Paulo, brinquedos importados da China. Os 1 000 reais faturados por dia, em média, viraram 50 na última terça-feira, 17. “Se ficar assim, precisaremos parar. Os bancos continuam nos cobrando”, reclama Maurício. A ajuda do governo foi anunciada, mas ainda não alcançou o casal. Para a economia formal, foram liberados 147 bilhões de reais entre antecipação de pagamentos de abono salarial, aposentadorias e isenções fiscais para empresas. Aos informais, foi rascunhado um projeto para permitir a emissão de cheques de salvação, um “voucher”, no valor de 191 reais por mês pelos próximos noventa dias. Serão 15 bilhões de reais remanejados de outras rubricas do orçamento público. A dinheirama das duas linhas somadas — 162 bilhões de reais — não chega aos pés do 1,2 trilhão de dólares (6,1 trilhões de reais) prometido por Donald Trump para socorrer os trabalhadores americanos. “Não há espaço para otimismo neste momento”, diz o economista Octavio de Barros, fundador da consultoria Quantum4. “A retração do consumo, fruto do comportamento defensivo das famílias, será sentida fortemente. Provavelmente empresas vão quebrar, por maior que seja o apoio aos pequenos negócios.”
Se os recursos disponibilizados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, parecem poucos perante o tamanho da crise, muito se dá pela triste condição fiscal entregue pela administração interrompida de Dilma Rousseff, ainda em 2016. De lá para cá, algumas regras fiscais foram aperfeiçoadas, como a criação da previsão constitucional do teto de gastos, que impede que o governo gaste mais no ano seguinte do que no anterior. A Regra de Ouro, outra previsão, mas que data de 1988, também representa uma amarra para contornar uma crise dessa dimensão, uma vez que proíbe o Tesouro de se endividar para custear gastos correntes, como salários e aposentadorias. A saída do governo federal para enfrentar a crise foi pedir ao Congresso a decretação do estado de calamidade pública, medida extraordinária que isenta a Fazenda de cumprir a meta de resultado primário — que, lembremos, já previa um déficit de 124 bilhões de reais para o ano.
Com isso, apesar do estica e puxa orçamentário, ficou mesmo para o Banco Central a função de salvador da pátria. No início da semana, a autoridade monetária, presidida por Roberto Campos Neto, liberou 135 bilhões de reais de depósitos compulsórios para que os bancos transformassem os recursos em linhas de crédito. O efeito da medida foi imediato. O Banco do Brasil, por exemplo, criou mecanismos para irrigar a economia com 100 bilhões de reais. É um tipo de crédito que, apesar de precisar ser pago no futuro, dá fôlego a quem está nadando com uma bola de ferro atada ao tornozelo. Na quarta 18, veio o corte na Selic. Diferentemente dos pares de países desenvolvidos, o BC brasileiro não possui autonomia nem a função de zelar pelo crescimento. Deve priorizar o valor do real — que se depreciou a ponto de serem necessários 5,20 reais para comprar 1 dólar na quinta 19. Com a nova taxa, o BC optou por tentar salvar o PIB, em detrimento da moeda. Em breve, ao menos uma incerteza terá se dissipado: saberemos o que os investidores pensam do Brasil como um país que cobra para receber empréstimos.
Com reportagem de Alessandra Kianek, Diego Gimenes e Larissa Quintino
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679