Como o fantasma da recessão econômica pode afetar o mundo e o Brasil
Para o Banco Mundial, países em desenvolvimento são mais vulneráveis. O risco fiscal, para piorar, parece só aumentar com a proximidade das eleições
Um estranho paradoxo tomou conta do mercado financeiro americano nos últimos dias. Em um ambiente em que alto índice de empregabilidade e aumento no consumo costumam ser sinônimos de boa notícia, economistas e investidores torciam por números abaixo das expectativas, na sexta-feira 3, data da divulgação dos dados relativos a maio. A informação de que foram criados 390 000 postos de trabalho no país e de que a taxa de desemprego alcançava apenas 3,6%, mantendo um viés de alta que já dura dezoito meses e se encontra próximo dos níveis pré-pandemia, acabou frustrando essa expectativa. De imediato, vozes de Wall Street passaram a vaticinar alertas pessimistas. Como Cassandra, a personagem da mitologia grega com o dom da profecia e que previu a queda de Troia frente à descrença generalizada, grandes nomes do mundo dos investimentos passaram a repetir uma palavra quase esquecida nos últimos tempos: recessão.
O presidente do banco JPMorgan, Jamie Dimon, alertou os investidores para se prepararem para um furacão, do qual não se sabe o tamanho. Seu par à frente do Goldman Sachs, John Waldron, afirmou que o clima de investimentos era um dos mais complexos que já experimentou, com “a confluência de um número de choques sem precedentes para o sistema”, como guerra na Ucrânia, crise de preços de energia, Covid-19, lockdowns na China e a alta de juros do banco central americano, o Federal Reserve. O homem mais rico do planeta, Elon Musk, avisou que tinha um “superpéssimo sentimento sobre a economia” e que precisaria cortar vagas em suas empresas. Representantes dos mais poderosos fundos de investimentos do mundo declararam que uma retração na economia seria inevitável, discordando apenas se isso aconteceria em 2023 ou em 2024, e se o impacto maior se daria nos Estados Unidos ou na Europa, afetada pela crise energética provocada pela guerra no leste do continente. O economista Robert Shiller, vencedor do Prêmio Nobel, declarou que uma recessão nos Estados Unidos poderia acontecer, em parte, por causa de uma “profecia autorrealizável”. “O medo pode levar à realidade”, disse. Uma prova é que as ações das empresas americanas já têm caído fortemente neste ano.
Tamanha preocupação pode soar como um grande exagero em um momento de forte retomada da atividade econômica. Mas é exatamente essa recuperação impressionante que causa preocupações para o futuro, ao indicar que a alta inflação que afeta os Estados Unidos não acontece apenas em decorrência de dificuldades em atender à oferta ou de choques externos, mas também por causa de uma aceleração incomum da demanda. A retomada do emprego passou a ser preocupante por gerar ainda mais pressão em uma economia em contínuo aquecimento e que já convive com a maior alta de preços em quarenta anos, acima de 8% no acumulado de doze meses — algo também visto do outro lado do Atlântico, na Europa. Até no Brasil os números do PIB surpreenderam positivamente no primeiro trimestre, com um consumo acima do esperado em alguns setores, mas de outro lado também trazendo uma inflação mais pesada, contaminada muito além de apenas por produtos importados e cotados em dólar — dos países que compõem o G20, é a quarta maior, perdendo apenas para as da Turquia, Argentina e Rússia. Ou seja, os bancos centrais terão um trabalho complicado para controlar as expectativas de alta de preços.
O Fed, presidido por Jerome Powell, tem dito que conseguirá levar a inflação americana para a meta de 2% sem causar recessão, mas cada vez mais gente já aposta que a taxa de juros pode ir além de 3,5%, e com isso acabe causando uma retração maior no futuro. “Um pouso leve da economia americana nunca foi feito em condições como as que existem agora. Os casos em que se conseguiu fazer isso sem causar recessão aconteceram com o desemprego entre 5,5% ou 6%, por exemplo”, lembra Solange Srour, economista-chefe do banco Credit Suisse no Brasil. Em seis das sete vezes que a taxa de juros subiu tão rápido assim, desde 1955, a economia caiu em recessão até um ano e meio depois.
Muitas nações enfrentam desafios similares aos dos americanos. Ao todo, os bancos centrais de 38 países, o que corresponde a 60% do total monitorado pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), já elevaram suas taxas de juros — o que inclui o Brasil. Nessa esteira de ajustes, o Banco Mundial revisou, na última semana, suas projeções do PIB mundial, cortando as expectativas de expansão do crescimento global de 4,1% para 2,9% em 2022, e de 3,2% para 3%, em 2023. Em relação ao Brasil, a expectativa melhorou para este ano, indo para 1,5%, mas caiu de 2,7% para 0,8%, em 2023. A boa notícia é que ninguém espera uma crise tão grande como as do impacto da Covid em 2020 ou a causada pelo setor financeiro e imobiliário americano em 2008. A nova e possível recessão lembra mais as causadas por inflação nos anos 1970 e 1980, também influenciadas pelos preços da energia, mas as condições econômicas hoje são melhores.
A má notícia é que, para o Banco Mundial, países como o Brasil são mais vulneráveis. Para piorar, o risco fiscal parece só aumentar com a proximidade das eleições. Na mesma segunda-feira, 6, em que o PT divulgou propostas de governo de Lula que propunham a revogação do teto de gastos e de reformas, o presidente Jair Bolsonaro anunciava a compensação em até 50 bilhões de reais aos estados que zerassem o IPTU de energia, sem propor contrapartidas de cortes para esse desembolso. Como virou brincadeira na Avenida Faria Lima, se, de um lado, Lula diz que não vai respeitar nenhuma regra fiscal, de outro, Bolsonaro já não respeita nenhuma. As sombras se avolumam no horizonte e a tempestade pode ser severa.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793