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Caso Americanas: Anatomia de uma fraude

O escândalo de uma das mais tradicionais varejistas do país pode induzir mudanças positivas nas regras de governança de empresas brasileiras

Por Márcio Juliboni, Camila Pati 26 jul 2024, 06h00

O início de fevereiro de 2017 foi intenso na sede da Americanas, um prédio de quatro andares na antiga zona portuária do Rio de Janeiro, cuja desgastada fachada cinzenta lembra mais uma velha fábrica dos anos 1960 do que o quartel-general de uma das líderes do varejo no Brasil. O epicentro da agitação era uma sala de reuniões do segundo andar, conhecida por suas paredes amareladas de nicotina e por seu apelido peculiar: a “sala blindada”. Era uma alusão a seu caráter reservado, próprio para conversas delicadas. Entre os dias 1º e 5, a cúpula da Americanas reuniu-se ali pelo menos cinco vezes, para discutir como atenderia às demandas da KPMG, sua auditoria externa, que relutava em emitir o parecer sobre as demonstrações financeiras de 2016 sem a apresentação de alguns documentos, em especial as cartas de circularização que comprovariam as obrigações que a Americanas afirmava possuir junto aos bancos Itaú e Santander. A apreensão era tamanha que Flávia Carneiro, então superintendente de controladoria, desabafou no grupo de WhatsApp batizado de “Auditoria 2016”, que reunia os principais envolvidos na missão: “tá desesperador”. A equipe só relaxou no dia 8, quando a KPMG enviou o parecer que acompanharia o balanço a ser divulgado no dia 20. O resultado não poderia ser melhor: no quarto trimestre de 2016, a empresa lucrara 256 milhões de reais, 25% mais que no mesmo período do ano anterior. No dia seguinte, o mercado festejou a boa notícia atribuindo uma alta de quase 3% às ações da Americanas, fazendo com que a valorização dos papéis acumulada naquele início de ano alcançasse 30%.

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A cena descrita poderia retratar apenas a tensão natural de executivos de uma das maiores empresas do país, não fosse pelo fato de que as reuniões na tal sala blindada e as frenéticas trocas de mensagens no WhatsApp perseguiam um só objetivo — fraudar os números verdadeiros, que exibiam uma crescente deterioração da operação. Como se sabe, o caso veio a público em 11 de janeiro do ano passado, quando a companhia comunicou a descoberta de “inconsistências contábeis”, cuja estimativa inicial era de 20 bilhões de reais. Para piorar, os autores da má notícia, Sergio Rial, o executivo-chefe, e André Covre, diretor financeiro, anunciaram que estavam de saída, após ocupar seus postos por apenas nove dias. A reação foi avassaladora. No dia seguinte, as ações derreteram 77%, despencando de 12 reais para menos de 3 reais. Credores correram para exigir a quitação antecipada de suas dívidas. Em resposta, a varejista pediu recuperação judicial dias depois, quando as dívidas foram recalculadas em 43 bilhões de reais. Na ocasião, as ações já valiam menos de 80 centavos. Quem melhor encarnou a revolta dos financistas com a situação foi Luis Sthulberger, da Verde Asset, um dos mais respeitados gestores de investimentos do país, que classificou o caso como “a maior fraude da história corporativa do Brasil” e ainda alfinetou Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que compraram a Americanas na década de 1980: “Estávamos falando de uma companhia com longo histórico, controlada por três acionistas considerados (até então) os melhores gestores de negócios do país; beira o inacreditável”.

Apesar da perplexidade, as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público revelam que o caso segue os mesmos padrões de grandes escândalos do passado, a começar pelos elementos que permitiram que ocorresse, sintetizados na teoria proposta em 1953 pelo criminologista americano Donald Cressey. Para ele, toda fraude é causada por três fatores. O primeiro é a velha pressão por resultados que valorizem ações e gerem dividendos. “A maioria das pessoas quer que o mercado de ações continue subindo”, afirma Shivaram Rajgopal (leia entrevista na pág. 26), professor da Columbia Business School e especialista em governança corporativa. “Até mesmo o governo quer um mercado sempre em alta, porque assim todos se sentem mais ricos.” Não é segredo que Lemann, Telles e Sicupira pregam uma impiedosa meritocracia.

Suspeito: Miguel Gutierrez, ex-CEO da empresa e gestor respeitado no varejo, liderava as fraudes, segundo a PF
Suspeito: Miguel Gutierrez, ex-CEO da empresa e gestor respeitado no varejo, liderava as fraudes, segundo a PF (./Reprodução)

Esse aspecto, aliás, é um dos argumentos da defesa de Miguel Gutierrez, que comandou a Americanas por duas décadas e é apontado pela PF como o líder do esquema fraudulento. Em uma carta à Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou o caso no Congresso, Gutierrez nega ter cometido ou incentivado qualquer crime e alega que o trio interagia livremente com a diretoria financeira, exercendo “uma intensa pressão por resultados positivos”. Até o momento, contudo, as investigações não encontraram elementos que liguem os três ao escândalo. Enquanto isso, para provar que estão empenhados em salvar a varejista, Lemann, Telles e Sicupira concordaram em injetar 12 bilhões de reais no caixa — uma demanda dos grandes bancos credores.

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Anna Saicali: segundo as investigações, a executiva era o braço direito de Gutierrez, na gestão e nas fraudes
Anna Saicali: segundo as investigações, a executiva era o braço direito de Gutierrez, na gestão e nas fraudes (Vinicius Loures/Câmara dos Deputados)

Em qualquer empresa, o ímpeto de bater metas é proporcional ao bônus prometido, o que pode incentivar desvios de conduta. “Se a cultura de uma empresa é obstinada por resultado, significa que se pode fazer qualquer coisa por ele”, diz Hugo Beth­lem, presidente do Instituto Capitalismo Consciente Brasil. Estima-se que Gutierrez e os principais diretores receberam 750 milhões de reais em salários, benefícios e bônus entre 2012 e 2022. A tentação de inflar resultados para engordar a remuneração é uma constante nas fraudes. A americana Enron, empresa do setor elétrico que protagonizou um dos maiores escândalos corporativos da história, pagou 320 milhões de dólares em gratificações aos principais executivos nos dez meses anteriores à sua falência, decretada em dezembro de 2001.

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O segundo fator citado por Cressey é a racionalização. Os criminosos não veem outra saída, além de maquiar dados, para alcançar as metas. O terceiro componente é o mais crucial: ter meios e oportunidades. O inquérito da PF mostra que os envolvidos detinham amplos recursos para tanto. O primeiro deles era gente. A PF estima que, além de Gutierrez, pelo menos quinze pessoas estavam envolvidas, da cúpula da companhia, onde estava Anna Saicali, então presidente da Ame, a fintech do grupo, e braço direito de Gutierrez, até o nível operacional, em que se encontrava Flávia Carneiro, a superintendente que fechou um acordo de delação premiada com o Ministério Público. Cada camada tinha o que precisava para cumprir sua parte na fraude que alcançou 25 bilhões de reais, como informado pela Americanas em junho de 2023.

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Sicupira, Lemann e Telles: sem evidências de participação na fraude, ainda assim são questionados por analistas
Sicupira, Lemann e Telles: sem evidências de participação na fraude, ainda assim são questionados por analistas (Editora Sextante/Divulgação)

No caso da falsificação de verbas de propaganda cooperada, que gerava créditos fictícios para a Americanas, a quadrilha mudou o processo de aprovação de resultados financeiros mensais. O objetivo era permitir que apenas algumas pessoas, previamente autorizadas, pudessem inserir manualmente informações no sistema. Segundo o inquérito policial, a manobra “visava centralizar as atividades fraudulentas e limitar o conhecimento sobre tais práticas a um círculo restrito de colaboradores”.

Para Michael D. Pakter, sócio da consultoria americana Gould & Pakter, especializada em contabilidade forense, a participação da cúpula da Americanas nas manipulações tornava ainda mais difícil a detecção dos desvios. “Em casos assim, os executivos têm controle significativo sobre processos e sistemas, e podem ignorar os controles internos”, diz. “Além disso, devido à senioridade, tempo no cargo e conhecimento, essas pessoas conseguem elaborar uma narrativa convincente de balanços anuais distorcidos.” Um exemplo revelado pelas investigações é a elaboração de documentos destinados especificamente para o conselho de administração da Americanas, chamados pelos integrantes do esquema de “visão conselho”. Outro é a presença de envolvidos nas fraudes em instâncias importantes, como o comitê fiscal, responsável por aprovar os balanços. Para uma fonte ligada aos acionistas de referência e que pediu anonimato, nenhuma estrutura de governança seria capaz de impedir algo desse porte. “Não adianta nada ter o avião mais moderno do mundo, cheio de luzes de alerta, se os tripulantes decidirem jogá-lo no mar, e foi o que aconteceu com a empresa”, diz. Basta lembrar que a companhia era listada no Novo Mercado, o segmento de mais alto nível de governança corporativa da B3.

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Mas tudo isso não significa jogar a toalha. A rea­ção de empresas estrangeiras e outros países a grandes escândalos contábeis traz boas ideias. Segundo a Association of Certified Fraud Examiners (ACFE), entidade internacional de combate a fraudes, um dos instrumentos mais eficazes para reduzir desvios é a auditoria-surpresa. Empresas que a adotam diminuem em 42% o número de ocorrências e em 63% as perdas financeiras, na comparação com corporações que não o fazem. Além disso, a ACFE reforça a necessidade de criação de um ambiente seguro para qualquer um reportar problemas. O motivo é que 43% das fraudes são descobertas por meio de denúncias — e os funcionários representam 52% dos dedos-duros, bem à frente dos clientes, que ocupam a segunda posição, com 21% das denúncias. Outros mecanismos eficientes na caça aos meliantes de colarinho branco são as auditorias internas, que detectam 14% dos casos, e a revisão de gestores por pares, com 13% dos relatos. As auditorias externas, sempre questionadas em grandes escândalos, respondem por apenas 3% dos desvios identificados — menos que os 5% de casos descobertos por puro acaso, segundo a ACFE.

Coelho, o novo presidente da Americanas: sua missão é resgatar a imagem e as finanças da empresa
Coelho, o novo presidente da Americanas: sua missão é resgatar a imagem e as finanças da empresa (Andressa Anholete/Bloomberg/Getty Images)

As mudanças de legislação e normas são outro caminho. Nos Estados Unidos, os escândalos da Enron e da WorldCom, no início dos anos 2000, motivaram a aprovação da Lei Sarbanes-Oxley, em 2002, endurecendo as exigências de transparência e responsabilidade de empresas e dirigentes. Já a quebra do banco Lehman Brothers e o estouro da bolha das hipotecas americanas, em 2008, culminaram na Lei Dodd-Frank, em 2010, apertando o cerco ao mercado financeiro. No Brasil, a crise da Americanas começa a suscitar reações. O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) apresentou um projeto de lei que pretende estimular a denúncia de boa-fé em casos de crimes financeiros. Para tanto, propõe o pagamento de prêmios proporcionais ao montante da fraude revelada. Já a B3 abriu uma consulta pública para endurecer as regras do Novo Mercado. Entre as propostas, estão o aumento dos assentos de independentes nos conselhos de administração e a obrigatoriedade de o CEO e o diretor financeiro emitirem declarações de responsabilidade que atestem a “efetividade das estruturas de controle interno”. Outra proposta é que as empresas listadas no Novo Mercado adotem cláusulas de clawback nas políticas de remuneração de executivos. O clawback permite que a companhia exija a devolução dos bônus, caso descubra o envolvimento de um executivo em tramoias. A ideia é inspirada na SEC, a equivalente americana à CVM, que, no ano passado, começou a exigir a adoção dessa cláusula das companhias listadas em bolsa. Além de afastar malfeitores, essas propostas podem ter um efeito colateral positivo. “Elas tendem a trazer muito mais atratividade ao mercado de capitais brasileiro”, diz Sebastian Soares, presidente do Ibracon, associação que representa as auditorias independentes.

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Enquanto as novas regras não chegam, Leonardo Coelho, sucessor de Sergio Rial no comando, luta para reerguer a companhia. Seu sonho é que a centenária marca Americanas volte a despertar boas “memórias afetivas” nos clientes. Por ora, a empresa evoca preocupações em credores, investidores e fornecedores. Quem visitou o segundo andar da sede da Americanas recentemente afirma que a sala blindada já não existe mais. É um bom começo.

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Para Shivaram Rajgopal, especialista em governança, é preciso incentivar a denúncia de fraudes

Rajgopal: a distância entre investidores e empresas enfraquece a governança corporativa
Rajgopal: a distância entre investidores e empresas enfraquece a governança corporativa (./Divulgação)
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Premiado professor e pesquisador da Columbia Business School, nos Estados Unidos, o indiano Shivaram Rajgopal alerta para o enfraquecimento dos laços entre investidores e empresas, algo que pode estimular desde a má alocação de capital até a ocorrência de fraudes. Nesta entrevista, Rajgopal explica por que estimular denúncias é o caminho para manter executivos na linha.

Geralmente, quem descobre as fraudes? Raramente são os reguladores ou os auditores. São principalmente denunciantes internos ou, ocasionalmente, investidores-ativistas, que operam com vendas a descoberto. Portanto, qualquer coisa que incentive essas pessoas tornaria o sistema muito mais eficiente em detectar e interromper fraudes, antes que se tornem muito grandes.

Qual sua avaliação do caso da Americanas, que escondeu dívidas com bancos, registrando como se fossem junto a fornecedores, o chamado “risco sacado”? Por que os auditores não descobriram isso? O que o conselho de administração estava fazendo? E o comitê de auditoria? Quando todos esses mecanismos falham, as fraudes acontecem.

O que mais poderia inibir as fraudes? Ações coletivas são um caminho, porque criam um incentivo para advogados buscarem problemas para ganhar dinheiro. Isso também ajuda na descoberta de más notícias, a identificar e parar a má gestão.

O que mais o preocupa, em termos de governança? Eu diria que a governança está piorando. Nos Estados Unidos, a ligação entre o controlador de uma empresa e o gestor de investimentos está cada vez mais distante. E, à medida que a ligação se torna mais distante, os consultores e intermediários preenchem essa lacuna. Muitos desses intermediários trabalham para si mesmos, e não necessariamente para o investidor. Portanto, à medida que se enfraquece a conexão entre o investidor, que fornece o capital, e os controladores de uma empresa, que utilizam esse capital, aumentam as chances de alocação ineficiente de capital e, eventualmente, de fraudes. Essas coisas provavelmente só vão piorar, por causa da inação.

Como a inteligência artificial pode reduzir o risco de fraude? Se aplicada de modo correto, a IA pode ajudar a encontrar inconsistências. Ela também pode coletar sentimentos ou informações sobre uma empresa em toda a web, especialmente sobre aspectos negativos levantados por imprensa, clientes ou investidores.

Publicado em VEJA, julho de 2024, edição VEJA Negócios nº 4

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