Capital privado ocupa espaço do BNDES e confirma a força do mercado
Perda de relevância do banco em relação ao passado mostra na prática quanto as ideias intervencionistas defendidas pelo PT são obsoletas
Na primeira passagem do PT pela Presidência do país, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) teve uma participação importante no financiamento das empresas consideradas estratégicas, especialmente as grandes, com capacidade de acessar mercados internacionais. A política apelidada de “campeões nacionais” canalizava recursos do Tesouro Nacional por meio do banco de fomento estatal, sob a longeva gestão de Luciano Coutinho, para incentivar o crescimento de companhias de setores considerados chave para a economia do país. A estratégia permitiu o desenvolvimento de alguns grupos, mas também foi polêmica por intervir demais no mercado e ter se traduzido em algumas tacadas furadas, como a operadora de telefonia Oi e o império corporativo de Eike Batista. Em sua volta à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva promete recuperar a força do BNDES, mesmo que sob outras bases. “Quero dizer para vocês que as empresas públicas brasileiras serão respeitadas”, disse Lula após sua eleição. “O BNDES, o BRB (Banco de Brasília) e o Basa (Banco da Amazônia) voltarão a ser banco de investimento, inclusive para pequenos e médios empreendedores.”
O presidente eleito parece não ter se dado conta de que o cenário hoje mudou radicalmente. Depois de um hiato de sete anos sem o PT no poder, não apenas o BNDES perdeu relevância em relação ao passado, contando com menos recursos, como o mercado de capitais preencheu o vácuo de financiamento, de forma mais eficiente, ao passar a conceder mais crédito para a iniciativa privada. Criado durante o governo de Getúlio Vargas, o banco nasceu a partir de uma visão do estado como principal indutor da economia. Em 2010, com valores corrigidos pelo IPCA, desembolsou 322 bilhões de reais, atingiu um pico de ativos de 1,3 trilhão em 2014, e depois murchou. Em 2021, sob a gestão de Gustavo Montezano, os financiamentos somaram apenas 64 bilhões de reais e os ativos caíram para 737 bilhões de reais. “O BNDES nunca mais terá a dimensão de cinquenta anos atrás, porque tudo está privatizado”, diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, presidente da instituição durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. “Nos últimos quatro anos, o BNDES diminuiu em termos de volume de operações e a economia andou sem sentir a sua falta.”
A visão de Barros é respaldada por números inquestionáveis. Com escolhas melhores para a aplicação de seus recursos e sem comprometer as contas públicas, o mercado de capitais atingiu, no ano passado, 558 bilhões de reais em 2 254 operações, quadruplicando de tamanho em ambas as métricas, em comparação com 2012. Neste 2022, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), o volume financeiro já alcançou, até outubro, 423 bilhões de reais, mesmo em um ano sem abertura de capital na bolsa de valores. Afinal, os últimos doze meses trouxeram imensas incertezas na economia local e internacional, com eleições presidenciais, alta de juros e guerra na Ucrânia.
Sem novas companhias chegando à B3, as emissões de debêntures — empréstimos a empresas por meio de títulos de crédito — somam sozinhas um recorde de 226 bilhões de reais entre janeiro e outubro. Há uma década, esse mercado de financiamento privado era concentrado em poucos bancos e gestoras, que se multiplicaram desde então. Além disso, as empresas captam financiamento a prazos maiores, chegando a vinte anos. Seria algo impensável uma década atrás, assim como a multidão de investidores individuais interessados em colocar recursos nessas formas de renda.
Com o forte desenvolvimento do mercado financeiro de um lado e as limitações de gastos públicos do outro, a tendência é que, mesmo a contragosto de integrantes do PT, o BNDES deixe o seu protagonismo para trás e atue como um complemento às instituições privadas, legando à economia de mercado o seu papel de se autorregular. “O papel do BNDES não poderá mudar no próximo governo porque ele depende do Fundo do Amparo ao Trabalhador. O novo governo não pode pegar recursos do Tesouro, porque não há mais espaço para isso. Hoje, a dívida do governo está muito alta e não há como fazer o que foi feito no governo Dilma”, explica o economista Carlos Thadeu de Freitas Gomes, diretor financeiro do BNDES entre 2017 e 2020 e atual consultor da instituição.
Caso essa realidade se imponha diante das ideias fixas e antiquadas de parte dos integrantes do novo governo, a atuação do banco de fomento tende a ser algo mais pontual. Montezano defende a ideia de que o banco atue mais como um estruturador de projetos e entre com apenas parte dos financiamentos. Isso pode ser especialmente importante em iniciativas resultantes do Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado em 2020, que facilita atuação privada no setor. Montezano também buscou redirecionar financiamentos a empresas menores, algo com o qual o novo governo Lula parece concordar. Uma das promessas de campanha é conceder crédito a juros baixos para as micros, pequenas e médias. “O grande risco seria subsidiar demais setores que não sejam de infraestrutura e o BNDES começar a competir com outros bancos”, diz Daniel Lemos, da gestora de recursos Riza.
Isso poderia gerar o efeito de afastar o capital privado, o que costuma acontecer quando uma ação do governo influencia muito a oferta ou a demanda do mercado. “Mas não parece que vá acontecer”, completa Lemos. Afinal, não é possível ignorar o fato de a iniciativa privada já ter preenchido em grande parte o espaço ocupado no passado pelo BNDES, e o governo não contar com a mesma folga fiscal de antigamente. Quanto antes o novo governo assumir essa realidade, melhor utilizará os recursos do BNDES e estimulará o mercado a contribuir para o desenvolvimento da economia do país.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818