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Cada vez mais países passarão a ver a China como líder global, diz economista e ex-conselheiro de Bill Clinton

A postura isolacionista tende a enfraquecer tanto o prestígio quanto a posição estratégica dos EUA no mundo, opina o profesor da Harvard Kennedy School

Por Luana Zanobia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 Maio 2025, 16h51 - Publicado em 29 Maio 2025, 16h48

Professor da Harvard Kennedy School e pesquisador sênior do Peterson Institute for International Economics, Robert Lawrence foi conselheiro econômico no governo de Bill Clinton (1993-2001) e é uma referência nos Estados Unidos nos debates sobre globalização, política industrial e desigualdade. Em seu livro mais recente, Behind the Curve: Can Manufacturing Still Provide Inclusive Growth? (ainda sem tradução em português, mas cujo título significa “Atrás da curva: a indústria ainda pode promover um crescimento inclusive?”), ele questiona diretamente a visão do presidente Donald Trump de que revitalizar a manufatura vai contribuir para cumprir o slogan “Faça os Estados Unidos Grandes de Novo”. Na entrevista a Veja, Lawrence explica que “o caminho mais promissor está no aumento da produtividade do setor de serviços”, que hoje concentra a maior parte dos empregos, e fala sobre como o isolacionismo praticado pelo presidente Donald Trump pode fortalecer a posição da China como líder global.

O plano de Donald Trump para fortalecer a indústria americana vai propiciar crescimento econômico? Essa é uma estratégia ruim e ultrapassada. Hoje, apenas 8,5% da força de trabalho dos Estados Unidos está empregada na indústria de manufatura. Mesmo que Trump fosse bem-sucedido em revitalizar o setor, talvez conseguisse aumentar essa participação para algo em torno de 10%, o que ainda representa uma fração pequena da economia americana atual. Ou seja, como proposta para beneficiar a maioria dos trabalhadores e reverter o declínio econômico de determinadas regiões, essa estratégia tem alcance bastante limitado. A economia americana, nas últimas décadas, evoluiu para setores como serviços, tecnologia e inovação. Apostar na manufatura como motor central do crescimento é ignorar essa transformação estrutural.

Por que, então, os governos ainda tentam ressuscitar a indústria em suas economias? Pura nostalgia. A memória de um tempo diferente parece guiar as políticas do governo. Nas décadas de 1950 e 1960, cerca de 35% dos americanos sem diploma universitário estavam empregados na indústria manufatureira — e esse setor tradicionalmente permitia que esses homens, mesmo sem muita educação formal, conseguissem empregos bem remunerados e entrassem para a classe média. Mas isso ficou no passado. Hoje, a manufatura representa uma parte muito menor da nossa economia — e também de muitas outras economias do mundo. Mesmo países industrializados de médio porte, como Alemanha, Singapura, Coreia do Sul e até agora a China, estão enfrentando quedas na cadeia manufatureira.

A imposição de tarifas terá o efeito de forçar as empresas trazerem suas operações de volta aos Estados Unidos? Essa medida não garante um ambiente mais favorável para a indústria local. As empresas americanas hoje fazem parte de complexas cadeias globais de suprimentos — e as tarifas dificultam o acesso a insumos essenciais. Isso pode, na prática, encarecer a produção e reduzir a competitividade das próprias empresas que se pretende beneficiar. Outro problema é a instabilidade das medidas. Esse nível de incerteza torna ainda mais improvável que empresas decidam realocar suas operações de volta aos Estados Unidos.

As tarifas podem reforçar o caixa do governo, outro argumento de Trump para a medida? Há sérias dúvidas sobre a possibilidade de que a cobrança de taxas de importação mais altas possa incrementar as receitas — principalmente porque outros países, inevitavelmente, vão retaliar. Isso tende a prejudicar os exportadores americanos, ao invés de ajudá-los. Ou seja, no fim das contas, essa política pode acabar ferindo justamente aqueles que ela pretendia proteger.

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Mas a manufatura ainda tem um papel importante? Sim, ela é fundamental, especialmente em setores como a descarbonização e a economia digital. Precisamos de manufatura para produzir veículos elétricos, painéis solares e turbinas eólicas. Além disso, sem a produção de semicondutores, a revolução digital e o avanço da inteligência artificial seriam impossíveis. No entanto, o que mudou é que, embora ainda seja essencial, ela já não é mais a fonte primária de geração de empregos como antes.

Qual o papel da tecnologia nessa mudança? Nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, a indústria pode realmente impulsionar o crescimento e a formalização do mercado de trabalho. Mas o contexto mudou: hoje, a produtividade é muito maior. Podemos produzir mais com menos trabalhadores, o que torna difícil replicar o modelo de crescimento industrial que funcionou para economias avançadas no passado. Assim, enquanto a manufatura ainda desempenha um papel importante, não podemos mais vê-la como a solução mágica para a criação de empregos em grande escala.

E qual seria a solução para criação de empregos nesse novo contexto?  O maior potencial está em como os países utilizam as tecnologias modernas, como a inteligência artificial, no setor de serviços. Esse campo oferece grandes oportunidades para melhorar a produtividade e a qualidade, especialmente em áreas essenciais como saúde, educação e serviços financeiros. Por exemplo, a tecnologia pode tornar os serviços médicos mais eficientes e acessíveis, com um impacto direto na população. Além disso, os setores de comércio, tanto varejista quanto atacadista, continuam sendo grandes empregadores. Também precisam aumentar sua produtividade para sustentar um crescimento mais robusto e inclusivo.

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Diversificação econômica é o melhor caminho, então? Sim. A chave não é se concentrar em um setor específico, mas identificar formas de aumentar a produtividade em toda a economia. Com isso, podemos gerar empregos melhores, mais estáveis e bem remunerados para uma maior parcela da população. Não se trata de escolher um setor específico, mas de identificar oportunidades em toda a economia para aumentar a produtividade — e, com isso, gerar empregos melhores, mais estáveis e mais bem remunerados.

Quais setores o senhor vê como os principais motores do crescimento nos próximos anos, especialmente em economias emergentes como o Brasil? O Brasil tem grandes fortalezas naturais. Sua base mineral é extremamente relevante, assim como o setor agrícola. Esses continuarão a ser pilares importantes da economia brasileira.

O que impede o Brasil de ter um papel mais relevante no comércio global? O Brasil demonstra interesse genuíno em fortalecer o sistema multilateral de comércio. No entanto, existem alguns fatores que têm limitado sua influência internacional nessa área. Em primeiro lugar, há uma questão de consistência nas políticas comerciais. Historicamente, o Brasil adotou estratégias ambiciosas, mas muitas vezes falhou em implementá-las de forma contínua e coordenada. Em segundo lugar, o país tenta evitar se alinhar exclusivamente com um dos grandes polos de poder. O Brasil está numa posição delicada e prefere não ter que escolher entre os Estados Unidos e a China. Essa neutralidade pode ser estratégica, mas também acaba limitando seu protagonismo em fóruns internacionais, onde muitas vezes se espera uma postura mais clara.

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Com o avanço do protecionismo, os acordos regionais podem substituir o sistema multilateral de comércio? Qual deve ser a estratégia do Brasil nesse novo cenário? O Brasil faz parte de iniciativas importantes, como o acordo do Mercosul, que agora avança para um acordo com a União Europeia. Esse tipo de acordo mostra que, mesmo com o protecionismo em países como os EUA, ainda existe espaço para o comércio internacional prosperar. Muitos países continuam vendo valor na globalização — e o Brasil precisa manter esse caminho. No cenário atual, o desafio vai além do Brasil. Países do Sul Global precisarão encontrar formas de construir um novo sistema comercial que não dependa exclusivamente da liderança americana. Isso provavelmente ocorrerá por meio de acordos regionais, mais descentralizados, em vez de um sistema multilateral unificado como o da OMC.

Quais são os riscos para o Brasil diante do enfraquecimento do sistema multilateral de comércio? Isso é um problema, especialmente para países exportadores de commodities agrícolas como o Brasil. O comércio de alimentos e produtos agropecuários exige regras multilaterais amplas e estáveis. O enfraquecimento desse modelo prejudica justamente países como o Brasil, que têm enorme potencial nesse setor. O Brasil tem interesse e potencial, mas enfrenta limitações políticas internas, dilemas geopolíticos e um cenário internacional fragmentado que dificultam seu avanço no comércio global.

Do ponto de vista geopolítico, o que essa guerra comercial significa? Estamos nos afastando de um sistema baseado em regras — ainda que imperfeitas — para um cenário em que os Estados Unidos agem com base apenas em seu poder e interesse imediato. Essa é uma mudança profunda na forma como o país se posiciona no mundo. Antes, mesmo com críticas, os Estados Unidos eram vistos como líderes que, de alguma forma, levavam em conta os interesses do sistema global. Hoje, com o lema “América em primeiro lugar”, pouco ou nenhum espaço é dado às necessidades do restante do mundo. Mesmo que os Estados Unidos consigam, no curto prazo, alguns acordos vantajosos, no longo prazo todos perdem quando o comércio internacional deixa de ser regido por normas claras e previsíveis. Cada vez mais países passarão a ver a China como líder global, enquanto a influência dos Estados Unidos diminui.

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E como fica a relação com os aliados? As políticas de Trump têm sido particularmente danosas para os aliados históricos dos Estados Unidos — como Canadá, México, Europa, Japão e Coreia do Sul. Ele minou relações diplomáticas importantes e criou atritos com parceiros estratégicos. No longo prazo, essa postura isolacionista tende a enfraquecer tanto o prestígio quanto a posição estratégica dos Estados Unidos no mundo.

As políticas comerciais dos Estados Unidos indicam um possível isolamento do país na economia global? Sem dúvida. O aumento de tarifas, os atritos com países vizinhos, as retaliações contra produtos americanos e o fechamento de mercados, tanto no exterior quanto internamente, apontam para um movimento de retirada dos Estados Unidos do sistema global de comércio. Esse tipo de postura pode acabar isolando o país economicamente, o que traz riscos consideráveis para sua influência e competitividade a longo prazo.

O Federal Reserve está tomando as medidas corretas? Quais os próximos passos esperados do banco? Acredito que o banco tentará manter a estabilidade. Não creio que reduzirá os juros para lidar com o aumento do desemprego, porque veem os preços sendo pressionados pelas tarifas e esse impacto se espalhando pelo restante da economia. É muito difícil para uma autoridade monetária lidar com um choque clássico de oferta.

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Como você vê o futuro do comércio global? Acho que os Estados Unidos podem se afastar [da globalização], mas vejo outros países — e, de fato, o potencial da tecnologia — permitindo a continuidade do movimento rumo a uma maior integração global. Hoje consigo fazer coisas que antes não podia. O potencial para a venda de serviços via e-commerce, para fornecer mercados globais a pequenas e médias empresas e dar a elas alcance internacional, é agora muito maior. Também vejo a inteligência artificial sendo usada para gerar mais eficiência no setor de serviços e em outros setores. Então, potencialmente, o mundo tem oportunidades. Temos tecnologia nos oferecendo caminhos, e a verdadeira questão é: a política e a geopolítica serão capazes de aproveitar essas oportunidades?

 

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