Aprovadas pelo Senado, medidas que anistiam dívidas beneficiam maus pagadores
Enquanto empresários e trabalhadores se esforçam para cumprir a pesada carga tributária, governadores, prefeitos e líderes partidários são premiados
Os senadores da República voltaram do recesso parlamentar revigorados, com ânimo redobrado para conceder bondades. Não para a população, mas para gestores públicos perdulários e para as finanças partidárias — ou seja, direta ou indiretamente, serão eles próprios os beneficiários. Num intervalo de 24 horas, nos últimos dias 14 e 15, o Senado, sob a liderança de Rodrigo Pacheco, aprovou três pacotes misericordiosos: uma nova renegociação de dívidas dos estados; um parcelamento de débitos previdenciários e regras mais frouxas para o pagamento de precatórios dos municípios; e uma anistia que vai reforçar os cofres dos partidos, com parcelamentos a perder de vista de multas eleitorais e obrigações junto ao INSS. Os dois primeiros projetos, com os socorros a estados e municípios, seguiram para apreciação na Câmara dos Deputados. O terceiro, de anistia aos partidos, já aprovado pelos deputados, foi promulgado pelo Congresso na quinta-feira 22.
Enquanto empresários e trabalhadores fazem das tripas coração para cumprir a pesada carga tributária brasileira, conscientes de que a fiscalização não lhes dará trégua e que prejuízos com calotes e atrasos são líquidos e certos, governadores, prefeitos e líderes partidários têm tudo para acreditar que bom negócio, mesmo, é ser mau pagador. De tempos em tempos, conseguem extrair do Congresso perdões ou condições mais favoráveis para suas dívidas. E a conta será paga pela sociedade como um todo, portanto por aqueles empresários e trabalhadores que honram suas contas e impostos em dia e não têm poder para perdoar a si próprios.
O caso da renegociação da dívida dos estados é o exemplo máximo do ciclo de incentivos aos maus pagadores e, como consequência, a novos endividamentos. O problema pautou a discussão pública ao longo de toda a década de 1990. A solução, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi federalizar as dívidas, refinanciar os pagamentos a longo prazo e criar regras para coibir o endividamento desenfreado dos estados — por exemplo, atribuindo ao Tesouro o poder de autorizar ou não novos empréstimos. Ao longo da primeira década seguinte, o modelo funcionou porque a economia e as receitas estaduais estavam em ascensão, o que permitiu aos governadores, dentro das regras, assumir gastos fixos, como a contratação de funcionários. No final do segundo mandato de Lula e início do primeiro de Dilma Rousseff, o ciclo econômico entrou em baixa e o equilíbrio das contas foi para o beleléu, em parte porque a estabilidade do funcionalismo público impedia a redução dos gastos com folha de pagamento. Além disso, dentro da lógica “gasto é vida” daqueles governos, o Tesouro foi pressionado a dar garantias excepcionais a estados que não estavam em condições financeiras para isso, como era o caso do Rio de Janeiro.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em 2000 no contexto das negociações com os estados, vedava novos refinanciamentos. Essa regra foi solenemente desrespeitada nos últimos anos por dois caminhos. Primeiro, por meio de ações movidas pelos estados junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com base na ideia de que a União deve socorrê-los para garantir a continuidade de serviços básicos para a população. Segundo, por meio da influência que os governadores têm junto aos parlamentares, tanto pelas alianças políticas entre eles quanto pelo interesse comum de direcionar recursos para suas bases eleitorais. Como resultado, todos os presidentes desde Dilma Rousseff renegociaram ou aliviaram as dívidas dos estados.
A renegociação aprovada neste mês pelo Senado não apenas premia os estados que se jogaram na gastança com a possibilidade de parcelar suas dívidas em trinta anos, como ainda estipula que os juros podem chegar a zero, permanecendo apenas a correção pela inflação, se seus governadores aplicarem os recursos economizados em educação, segurança pública, saneamento, entre outras destinações. “Esse novo projeto atingiu o nível máximo do absurdo: a suposta exigência feita aos estados é que gastem mais, vinculando receita com esta ou aquela finalidade, em vez de estimular a responsabilidade fiscal”, afirma o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
A pressão sobre o governo e o Congresso começou com os estados mais endividados, que são também os mais ricos do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (veja o quadro). Os três últimos, aliás, suspenderam o pagamento de suas dívidas depois de aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), um programa do Tesouro para auxiliar estados em grave desequilíbrio fiscal, mas enfrentavam a incômoda obrigação de limitar os gastos e de, no futuro, pagar os encargos acumulados acrescidos de juros.
No novo programa de refinanciamento, para dar alguma compensação aos estados cujas gestões, nos últimos anos, preocuparam-se com o equilíbrio fiscal e não têm culpa pela gastança dos outros, criou-se um Fundo de Equalização Federativa que vai receber até 2% do saldo da dívida daqueles que aderirem à renegociação. Os recursos desse fundo serão distribuídos aos estados menos endividados por critérios de renda e população. Trata-se de um remendo que não premia, verdadeiramente, os bons pagadores e não protege a União de sofrer novos calotes.
O perdão aos estados não toca em um ponto essencial da gestão pública: a busca por maior eficiência. Os maus pagadores podem pensar que saem na vantagem a cada renegociação, mas os dados mostram que os estados com melhores indicadores de serviços públicos são justamente aqueles que mais controlaram as despesas nos últimos anos. É o caso do Espírito Santo, que está entre os cinco estados com melhor desempenho em educação pública nos ensinos fundamental II e médio.
Os lobbies de governadores e prefeitos sobre os parlamentares não são feitos para que esses bons exemplos se tornem a regra na gestão pública. Ao contrário, a pressão é para que a ineficiência continue sendo o padrão. Nesse sentido, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Senado que amplia a flexibilidade orçamentária e refinancia dívidas dos municípios, com possibilidade de parcelamento em até 300 meses, segue a mesma lógica da renegociação com os estados e da PEC da Anistia aos partidos. Trata-se de uma vitória da Confederação Nacional de Municípios (CNM), que representa pequenas e médias cidades e organiza a Marcha dos Prefeitos, que reúne milhares de gestores municipais em Brasília uma vez por ano. Na edição de 2023, o representante do governo federal no evento foi o vice-presidente Geraldo Alckmin. “A Marcha dos Prefeitos pode se chamar também a Marcha do Povo, porque, quanto mais nós fortalecermos o governo local, mais próximos estamos da população”, disse Alckmin. A frase reflete bem o trunfo que as prefeituras têm na mão para extrair facilidades da União, inclusive perdões ou refinanciamento de dívidas, o que nem sempre significa estar “mais próximo da população”.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907