Eletrobras traz bom sinal, mas governo Bolsonaro é tímido com privatização
O país ainda precisa percorrer um longo caminho para se livrar do peso e da ineficiência das estatais
Próximo ao apagar das luzes dos seus quatro anos de gestão, o governo de Jair Bolsonaro pode, enfim, vislumbrar sua primeira grande privatização, depois de muito prometer. Nos últimos dias, foram vencidos os empecilhos finais que travavam a oferta de ações da Eletrobras, a maior empresa de energia da América Latina, a investidores privados, o que deve acontecer em meados de junho, segundo o cronograma divulgado. O negócio promete movimentar entre 30 bilhões e 36 bilhões de reais, com o governo federal baixando a sua participação de 72% para 45% na empresa, o que pulverizará o seu controle. No fim de maio, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou o prosseguimento do negócio, e donos de crédito da Furnas, uma das subsidiárias da Eletrobras, aceitaram que a companhia faça um necessário aporte na problemática usina hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia, situação pendente que era um potencial risco à venda da estatal de energia. “Até o último segundo vai haver liminares e judicialização do processo, mas os maiores entraves foram superados”, avalia Ana Karina Souza, sócia de energia do escritório Machado Meyer Advogados.
Com as ações da Eletrobras à venda na Bolsa de Valores de São Paulo, a equipe econômica capitaneada pelo ministro Paulo Guedes terá finalmente bons motivos para comemorar. Desde os primeiros rascunhos do plano de governo de Jair Bolsonaro, Guedes e seus técnicos se propuseram a uma ampla pauta privatista, ao lado de uma série de outras reformas estruturantes para estimular a atividade econômica. A ambição de Guedes era arrecadar mais de 1 trilhão de reais apenas com vendas de estatais. O desafio, entretanto, foi muito maior do que o ministro avaliava. Entre as prioridades estavam dezessete empresas (veja o quadro). Desse total, apenas três foram efetivamente ofertadas à iniciativa privada — BR Distribuidora, Transportadora Associada de Gás e Companhia Docas do Espírito Santo. As demais encontram-se em diferentes estágios de andamento. “Estudos avançados sobre a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, o metrô de superfície de Belo Horizonte, e o Ceasaminas estão, agora, em análise no TCU, que deve liberá-los em breve. Outros estudos bem encaminhados são do Trensurb, empresa de trens urbanos de Porto Alegre, e do Porto de Santos. Os dos Correios não conseguem seguir em frente porque o Senado não deu o seu aval”, explica Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado do Ministério da Economia. Na semana passada, em meio à crise política provocada pela alta no preço dos combustíveis, o Ministério de Minas e Energia, sob o comando de Adolfo Sachsida, pediu a inclusão da Petrobras no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Caso aprovada, a medida abre caminho para a privatização da petroleira — um marco histórico, mas que deve demorar ainda para acontecer.
Faltando cerca de seis meses para o fim do mandato de Jair Bolsonaro, o governo terá de se esforçar substancialmente para conseguir avançar, de fato, em seus planos de desestatização. Como acontece com outras reformas de grande relevância, como a administrativa, a venda de empresas públicas enfrenta a resistência de políticos, servidores e organizações sindicais que se valem da ineficiência, do inchaço e de privilégios oferecidos — cargos públicos, em geral com alta remuneração, e orçamentos milionários, alvos fáceis de esquemas corruptos. Até o próprio presidente da República tem demonstrado ao longo de todo o seu mandato posições contraditórias sobre o assunto, o que levou auxiliares de Guedes como o empresário Salim Mattar, sócio da locadora de automóveis Localiza, a pedir demissão do posto de secretário de Desestatização em agosto de 2020. “O tempo de privatização é longo: demanda consultar, avaliar, pegar informação, ter firmeza na decisão. Mas acima de tudo é preciso ter um objetivo claro para esse processo, que já é extremamente complexo”, diz Elena Landau, diretora de privatizações do BNDES nos anos 1990.
Programas de desestatização não são novidade no Brasil e o país coleciona conquistas muito relevantes nesse aspecto. Entre 1991 e 2002, foram privatizadas 165 empresas públicas, entre companhias sob responsabilidade da União, estados e municípios. Apenas durante o triênio de 1997 a 1999, correspondente à segunda metade do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil se desfez de 123 estatais. Os ganhos alcançados são inegáveis. A Embraer, privatizada em dezembro de 1994, transformou-se em uma potência no competitivo mercado global de aviação civil e militar e hoje se tornou uma das pioneiras em pesquisas com foco no futuro do setor aéreo, ao desenvolver protótipos de carros voadores.
No setor de telecomunicações, empresas que mal conseguiam suprir a demanda de instalação de telefones fixos foram substituídas por companhias que atendem a um mercado onde existem 242 milhões de smartphones (o que corresponde a mais de um aparelho por habitante) e atualmente conduzem a transição para a telefonia móvel de alta velocidade, o 5G. A Vale, privatizada em 1997, faturava por ano cerca de 3 bilhões de reais e empregava 15 142 pessoas quando era uma estatal. Com capital aberto, hoje ela é a maior empresa do país, responsável por 72 000 empregos diretos, e tem receita de 293 bilhões de reais anuais. Apenas em impostos e royalties, a Vale rendeu ao governo federal no ano passado o equivalente a 45 bilhões de reais.
As empresas estatais surgiram em meados do século XIX como uma solução para suprir deficiências de mercado. Na época, a Inglaterra havia alcançado uma brutal dianteira econômica e tecnológica graças à Revolução Industrial. Do outro lado do Canal da Mancha, países como França, Bélgica e Alemanha entenderam que poderiam diminuir a lacuna em relação aos britânicos com investimentos públicos maciços em empresas controladas pelo governo dedicadas a setores como ferrovias, siderurgia e geração de energia. No Brasil, o modelo começou a ser aplicado quase um século depois, sob o comando de Getúlio Vargas, quando o governo federal tomou a dianteira no planejamento do desenvolvimento econômico, ocupando áreas negligenciadas pelos investimentos privados. É quando nascem colossos como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras, entre outros. Uma peculiaridade do modelo brasileiro foi o viés ideológico que acompanhou o movimento marcado fortemente por uma cultura antimercado, de desconfiança do lucro e de protecionismo. Não por acaso, a atuação do Estado em áreas estratégicas tornou-se uma questão de soberania nacional. “Por aqui desenvolveu-se uma mentalidade de que o mercado era mal, o lucro pernicioso. E isso em um momento em que no exterior as estatais já eram vistas como fonte de problemas para os governos, com seu gigantismo e ineficiência”, explica Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.
Poucos líderes mundiais personificaram a vontade política de livrar o Estado do peso de elefantes brancos como a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Em seu governo, entre 1979 e 1990, ela vendeu companhias de diversos setores, entre eles energia e comunicações, ainda que sob feroz resistência de sindicatos e rivais políticos. Bem-sucedido, seu exemplo foi seguido na década seguinte por governos da América Latina e Europa Central, com a queda dos regimes comunistas. Apenas durante o processo de reunificação da Alemanha, em 1990, a agência responsável pela desestatização vendeu mais de 300 empresas. Tais experiências deixaram um legado relevante no que diz respeito às soluções para transferência de empresas públicas para a iniciativa privada, minimizando impactos sociais negativos e maximizando as chances de sucesso futuro. Desde então, em pelo menos três ocasiões, o Prêmio Nobel de Economia foi outorgado a pesquisadores que se dedicaram diretamente ao tema. É o caso do francês Jean Tirole, laureado em 2014 por analisar regulação e poder de mercado, e dos americanos Paul Milgrom e Robert Wilson, vencedores em 2020, por trabalhos sobre leilões de ativos. Entre as muitas lições aprendidas, estão, por exemplo, a importância das agências reguladoras na criação e manutenção de mercados robustos, com alta capacidade de geração de empregos, produtos e serviços de qualidade a preços competitivos.
Infelizmente, o Estado brasileiro ainda está muito inchado. Estudo recente do Ministério da Economia com dados do terceiro trimestre de 2021 contabiliza 46 estatais e 112 subsidiárias em poder da União. Tais empresas gastam por ano 72,4 bilhões de reais apenas com pessoal. Apesar de conquistas como a da Eletrobras, o governo de Jair Bolsonaro tem apresentado um posicionamento errático na maneira como lida com a privatização. Empresas pequenas e de menor importância, alvos fáceis de programas de estatização mais consistentes, resistem, como é o caso da Empresa Brasil de Comunicação e da desenvolvedora de chips Ceitec. E, em meio às dificuldades de reduzir o número de empresas públicas, criaram-se outras — ainda que pequenas —, como a NAV Brasil, inventada em 2020 para abrigar 1 698 servidores, oriundos da Infraero, e a ENBPar, que administrará a Itaipu Binacional e a Eletronuclear, excluídas do rol de companhias da Eletrobras. O fato é que os avanços poderiam ter sido muito maiores sem os arroubos populistas e eleitoreiros que acometem o atual presidente. Está mais do que provado que a mão pesada e burocrática do Estado deve se manter longe da gestão de empresas. Isso trará benefícios evidentes para o próprio governo, para os cidadãos brasileiros e para essas companhias.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792