Programa de incentivos para baratear carros mostra governo na contramão
Além de pouco eficiente, o projeto se choca com esforços ambientais e fiscais de parte da gestão de Lula
Em meados de 1993, o presidente da República era Itamar Franco, o país havia saído de um desgastante processo de impeachment que cassou o mandato de Fernando Collor e uma inflação superior a 1.000% ao ano corroía a economia. Na época, numa tentativa de amenizar a crise e melhorar a própria imagem, o governo criou um programa de redução de impostos para incentivar a compra de carros populares e negociou com uma empresa o retorno da produção do Fusca, modelo que, de tão ultrapassado, já havia deixado as linhas de montagem na década anterior. Há trinta anos, ter o próprio carro era o sonho de consumo de dez entre dez brasileiros, os aplicativos de transporte não existiam, os cuidados e as preocupações com o meio ambiente se situavam num patamar bem menor do que hoje e o peso da indústria automobilística era enorme. Os tempos literalmente eram outros.
Em fevereiro deste ano, representantes da indústria automobilística pediram ao governo a recriação de um programa de incentivos para tentar oxigenar o setor que vem enfrentando quedas sucessivas de vendas nos últimos dez anos, evitar novos fechamentos de fábricas e o consequente desemprego que atingiria toda a cadeia produtiva. Em uma reunião com técnicos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), os argumentos das montadoras foram apresentados como alerta, mas também embutiam nas entrelinhas uma certa pressão, especialmente quando se falou num iminente risco de demissões e paralisações caso nada fosse feito em um curto espaço de tempo. Para o governo, seria muito desgastante enfrentar greves e manifestações, num cenário ainda conturbado pelos ataques de 8 de janeiro. As demandas foram prontamente encaminhadas ao presidente Lula.
Poucos dias depois, em março, o presidente pediu a Geraldo Alckmin, vice-presidente e ministro do MDIC, a elaboração de um estudo para criar algum tipo de incentivo capaz de manter os empregos do setor e, se possível, acompanhado de um plano de descarbonização, mirando veículos mais sustentáveis ambientalmente — uma vacina contra o discurso de que o governo estaria na contramão do mundo ao incentivar a centenária indústria automotiva. “Não podemos permitir que o país que já gerou 130 000 empregos nesse setor fale atualmente em 50 000 desempregados diretos nesse segmento”, disse a VEJA um integrante da equipe que participou da elaboração da proposta.
O presidente pediu celeridade. A medida foi desenhada com a ajuda de técnicos do ministério de Alckmin e do Ministério da Fazenda, orientados pelas demandas ouvidas nas conversas com representantes do setor. A ideia é conceder incentivos fiscais progressivos a fabricantes que atenderem a três critérios: um social (quanto menor o preço do carro, maior o desconto no PIS/Cofins), um ambiental (com maiores deduções para carros menos poluentes) e um de densidade industrial (quanto maior o percentual de itens produzidos no país, maior será a desoneração).
Os incentivos serão oferecidos para veículos que custam até 120 000 reais. A estimativa é de que a queda no preço final varie de 1,5% a 10%. Hoje, o modelo mais simples vendido no Brasil é o Renault Kwid, avaliado em 69 000 reais. “A proposta de estímulo é transitória, anticíclica, para este momento de muita ociosidade na indústria”, disse Alckmin, ao anunciar as principais diretrizes da proposta. As empresas queriam que as isenções se estendessem pelo prazo de um ano. O Ministério da Fazenda propôs entre três e quatro meses, período em que as montadoras projetam vender 120 000 veículos novos, preservando 101 000 empregos diretos e mais 1,2 milhão indiretos. A União, por outro lado, deixaria de arrecadar 500 milhões de reais.
Há dúvidas sobre a eficácia dessa nova isenção de impostos. Economistas ouvidos por VEJA a consideram anacrônica, de muito custo e pouco impacto, principalmente diante das benesses que o setor já recebe. Ambientalistas, por sua vez, lembram que o mundo está desestimulando o uso do carro pessoal para atingir as metas de descarbonização. E representantes da própria indústria automobilística ressaltam que o foco está errado. “Na proposta não há avanço e respeito à política ambiental. É uma verdadeira marcha à ré, em relação a tudo o que se faz mundo afora”, alerta Alexandre Baldy, ex-ministro das Cidades e atual conselheiro especial da BYD no Brasil, a chinesa que é a maior fabricante de veículos elétricos do planeta. E há, inclusive, divergências dentro do próprio governo.
Após o anúncio feito por Geraldo Alckmin, assessores do Ministério da Fazenda fizeram circular o boato de que partes do projeto apresentado pelo MDIC desrespeitava a Lei de Responsabilidade Fiscal. Também ventilaram a informação de que Fernando Haddad teria ficado “irritado” com a forma apressada como o tema foi discutido. O ministro teria considerado inconveniente o momento escolhido para tornar pública a proposta — dois dias depois da votação do arcabouço fiscal, que exigirá do governo esforço para aumentar a arrecadação, e um dia depois de a Fazenda divulgar uma lista de 15 000 empresas beneficiadas com algum tipo de desoneração. Haddad tem buscado convencer o mercado financeiro e os investidores de que o governo conseguirá cumprir a meta fiscal estabelecida pelas novas regras. Parte essencial dessa missão é aumentar a arrecadação, cobrando mais de quem hoje paga menos.
A Receita Federal calcula que as montadoras deixaram de recolher 69 bilhões de reais com benefícios fiscais entre 2000 e 2021. Ou seja, se o setor está em dificuldades não é por falta de programas de incentivos. “A chance desse tipo de política dar errado é maior do que de dar certo”, afirma o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Segundo ele, a redução de impostos subsidia a classe média, mas não pode ser considerada uma política de desenvolvimento industrial. “No médio prazo, precisamos de medidas estruturais que aumentem a média de renda do brasileiro. A reforma tributária é uma delas”, defende Roberto Braun, diretor de assuntos governamentais da Toyota.
O trimestre encerrado em março foi o pior para a produção de carros desde 2004. Há ainda uma outra questão de fundo. O carro popular de trinta anos atrás não existe mais nem pode existir. “Ao longo dos anos, os veículos incorporaram equipamentos obrigatórios de segurança, dispositivos que controlam a emissão de gases e sistemas de conectividade. Hoje, um carro como o Fusca custaria 80 000 reais”, lembra o executivo da Toyota. Em outras palavras, o preço de alguns veículos pode até cair, mas continuará muito distante de algo que possa ser considerado popular. O governo não esconde que a medida é um aceno aos eleitores de classe média. O problema é fazer isso abrindo mão de recursos que poderiam ser canalizados para escolas, hospitais e compra de remédios.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844