A festa não é a mesma
Principal rival da Uber, a Lyft abre seu capital e põe em xeque a ideia de que o lucro é uma questão de tempo para os gigantes digitais
As empresas de aplicativos de transporte são algumas das estrelas da nova economia. Onipresentes em cidades do mundo inteiro, elas romperam com o monopólio de taxistas oferecendo um serviço com maior praticidade, previsibilidade e preços mais baixos. Impactaram milhões de pessoas. Não por acaso, duas das três maiores novatas de tecnologia que mantêm capital fechado no planeta atuam no segmento: a pioneira americana Uber, avaliada em 72 bilhões de dólares, e a chinesa DiDi, que se tornou a maior do ramo no mundo ao dominar seu mercado doméstico e entrar com força em países como o Brasil (onde é a dona da 99), o que lhe rendeu uma avaliação de 80 bilhões de dólares. Não é sem razão que a abertura de capital da Lyft, a vice-líder nos Estados Unidos, tenha despertado tanta atenção de investidores e analistas. Fundada em 2012 e responsável por 40% dos 230 milhões de viagens realizadas com carros chamados por aplicativo nas ruas americanas em 2018, ela jamais apresentou lucro. A questão a que todos querem responder é: esse modelo de negócios pode um dia ser rentável? Mais importante: vale a pena investir em companhias com anos de estrada que jamais deram retorno?
Funcionar com prejuízos é uma péssima notícia para quase toda a economia — seja na indústria, no comércio ou no mercado financeiro. Mas essa lógica nem sempre se aplica às novatas de tecnologia. São numerosos os casos de companhias bem avaliadas pelo mercado, com ações em alta e que são disputadas por fundos especializados para receber um aporte de capital — e tudo isso apesar de perdas sucessivas. O caso mais emblemático é da Amazon. A companhia foi fundada por Jeff Bezos em 1994, como uma varejista on-line de livros, e abriu o capital na bolsa três anos mais tarde. Somente em 2001 ela conseguiu encerrar um trimestre no azul, com lucro de míseros 5 milhões de dólares. O Facebook e o Google tampouco deram retorno antes de cinco anos de vida. Os investidores não se importavam. Na nova economia, mais relevante é crescer de forma acelerada para conquistar mais usuários e tornar-se dominante no mercado. O resultado, apostam os financistas, vem cedo ou tarde.
A Amazon tornou-se a empresa líder no comércio eletrônico nos EUA, ergueu uma rentável plataforma de computação na nuvem e inovou com produtos como a Alexa, uma assistente de voz virtual que permite a interação de usuários por meio de uma caixa de som, o Echo. Hoje está entre as companhias com maior valor de mercado do mundo: quase 900 bilhões de dólares, e um lucro anual de mais de 11 bilhões. “É mais importante montar um ecossistema para garantir o fluxo de usuários no aplicativo ao longo do tempo do que obter lucro no início da operação”, explica Björn Hagemann, sócio da consultoria McKinsey.
Se o objetivo primeiro for conquistar clientes, Lyft, Uber e DiDi estão no caminho certo. Um em cada três americanos já usou um aplicativo de transporte para se locomover. Trata-se de uma massa de 109 milhões de pessoas. Três anos atrás, essa proporção era de apenas um em cada sete. Pesquisas mostram que cada vez menos gente sente necessidade de ter carro próprio, o que aumenta o potencial de mercado. Além disso, tanto a Lyft como a Uber apostam fortemente no impacto que a chegada dos veículos autônomos pode trazer para os negócios: a otimização das viagens por meio dos computadores e a redução de custos trabalhistas podem finalmente levá-las ao lucro. Afinal, retorno de investimento ainda é uma quimera no setor. É sabido que nenhuma dessas empresas opera no azul, mas a Lyft foi a primeira a abrir seus dados de operação e financeiros para habilitar-se a ter ações negociadas. Por um lado, comprovou-se que a companhia cresce de forma vertiginosa. O faturamento mais que dobrou em um ano, saltando para 2,2 bilhões de dólares entre 2017 e 2018. O diabo está no prejuízo, gigantesco: passou de 690 milhões para 910 milhões de dólares no mesmo período.
Na corrida para conquistarem hegemonia nos mercados, ou pelo menos não serem engolidas pelas concorrentes, as empresas têm despesas enormes com marketing em ações necessárias para reforçar a exposição da marca. Pelo mesmo motivo, todas possuem uma política agressiva de descontos para os passageiros e para os motoristas. A Lyft e suas rivais terão também de encontrar meios de atrair novos usuários em locais desfavoráveis a elas, como as regiões rurais, onde a cultura do carro próprio resiste por causa dos longos trajetos. Finalmente, precisam convencer milhares de governos pelo mundo a não criar empecilhos legais para sua operação — a prefeitura de Barcelona, na Espanha, arranjou tantas complicações que a Uber deixou a cidade. “Nós temos um histórico de prejuízos, e talvez não vamos conseguir alcançar ou manter a lucratividade no futuro”, admitiu a Lyft em documento enviado às autoridades para abrir o capital, ao tratar dos riscos de seu negócio. O preço da ação da Lyft para a estreia na Nasdaq, a bolsa que reúne os principais nomes do setor de tecnologia, ficou em 72 dólares, acima da estimativa inicial, de 62 a 68 dólares. No primeiro pregão, a cotação chegou a se valorizar em 20%, e tudo parecia que ia terminar bem. Mas, nos dias seguintes, a valorização perdeu tração, e recuou para abaixo de 70 dólares.
A abertura de capital da Lyft serviu como uma espécie de prévia do apetite de investidores pelas ações de empresas novatas de tecnologia. Há uma lista de companhias notáveis. Espera-se que a Uber entre com o seu pedido até o fim de abril. O Airbnb, plataforma de aluguel de imóveis, e o Pinterest, rede social de imagens, também devem abrir o capital. As expectativas são elevadas, mas o histórico das companhias de tecnologia na última década mostra que os sucessos estrondosos são mais raros do que os fracassos. As ações do Facebook ainda acumulam uma alta de 357% desde a sua estreia na bolsa, em 2012, a despeito dos escândalos com o vazamento e o uso indevido de dados dos usuários. Por outro lado, a cotação dos papéis do Snap despencou 34% desde a abertura de capital, há pouco mais de dois anos. No caso da Zynga, empresa que desenvolveu o jogo Farmville, a queda se aproxima de 50% desde 2011. Não faltarão casos para ser estudados nos próximos meses.
Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629
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