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A crise financeira se alastra e aumenta risco de implosão da Zona do Euro

A divisão entre os países do bloco econômico se torna mais grave com os efeitos da Covid-19

Por Denise Chrispim Marin, Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h44 - Publicado em 30 abr 2020, 19h50

Com um rastro de mais de 100 000 mortos e uma devastação econômica sem precedentes, a pandemia do novo coronavírus tem provocado uma desagradável sensação de déjà-vu no continente europeu. Encastelados em Bruxelas, cidade-sede do maior bloco econômico do planeta, os dirigentes da união política e econômica tentam controlar uma estrutura marcada por rachaduras e pela discórdia entre seus membros — exatamente como aconteceu há doze anos, logo depois do furacão marcado pela crise global de 2008. Enquanto as nações mais atingidas pela virose originada na China cobram medidas mais amplas para fazer frente à catástrofe que se instalou em seus territórios, os países do Norte rico seguem reticentes a fazer concessões e desviar-se das bases econômicas que caracterizam o bloco. A cizânia traz ainda outro componente indigesto: o inevitável balanço sobre quem ganha e quem perde com a abdicação da soberania na gestão da política monetária em nome da moeda única entre os dezenove países da Zona do Euro. Profundamente afetada pela Covid-19, a Itália surge como a maior perdedora nesse embate e a mais séria candidata a abandonar o projeto de integração monetária — e até o próprio bloco —, uma vez que ainda se ressente dos impactos da crise anterior. Caso isso aconteça, o efeito tende a ser grande e apresentar consequências tão traumáticas quanto a saída do Reino Unido do grupo, o chamado Brexit.

A situação da Itália começou a provocar mal-estar entre seus pares no início de abril, quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, oficializou um pedido de desculpas a Roma. Na ocasião, ela disse que o bloco não teve agilidade e coesão suficientes para socorrer o país na fase mais crítica da pandemia. “Isso foi prejudicial e poderia ter sido evitado”, declarou. Passado praticamente um mês, ainda não há consenso sobre como se dará o socorro financeiro. Os italianos acreditam que o pronunciamento se tratou apenas de retórica. Para eles, a conduta das nações tem se pautado no cada um por si e o sinal mais claro disso é a resistência ferrenha da Alemanha e da Holanda à emissão dos chamados “coronabônus”, títulos nacionais que financiariam os gastos em escalada de governos já altamente endividados, mas que teriam seu risco compartilhado pelos demais parceiros europeus. “Nós estamos vivendo o maior choque desde a II Guerra Mundial, e a Europa tem de apresentar uma resposta”, implorou o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, durante uma reunião dos líderes do bloco que terminou sem consenso há duas semanas.

Em situação fiscal mais confortável, a França já sinalizou total apoio aos coronabônus. E veio justamente do presidente Emmanuel Macron o alerta mais contundente sobre os riscos de esfacelamento do bloco e da Zona do Euro no pós-pandemia. Ao levantar a potencial expansão do populismo nos países mais atingidos e criticar a visão de que uma Europa unida é uma ideia puramente comercial (comum na Alemanha e na Holanda), Macron afirmou ser esta a “hora da verdade”. Para ele, há o perigo de a Zona do Euro não sobreviver à turbulência, o que se estende a todo o bloco em si. “Não sei como será isso, mas o risco é evidente.”

O lançamento dos coronabônus, em caráter temporário, é encarado como a tábua de salvação para os países de economia combalida atenuarem as pressões dos partidos de extrema direita em nome do nacionalismo e da cisão com o bloco. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta que apenas a Itália sofrerá uma queda de 9,1% no produto interno bruto (PIB) neste ano — índice maior do que a estimativa de queda de 7,5% para toda a Zona do Euro. O desemprego deve se aproximar de 12% e a dívida bruta nacional alcançará 155% do PIB, em um contexto de inevitável explosão do déficit público justamente em um momento em que parecia relativamente controlado.

Se a criação da União Europeia foi um movimento político para solidificar a paz no continente, o euro surgiu com a missão de fortalecer a economia do bloco e enfrentar o dólar, como uma alternativa de reserva e padrão de transações internacionais. Os objetivos financeiros, contudo, nunca foram alcançados plenamente. “A emissão dos coronabônus ajudaria a Itália a rolar sua dívida, por exemplo, sem cair na tentação de ressuscitar a velha lira. Menos valorizada que o euro, a moeda tornaria o país mais competitivo”, afirma Otaviano Canuto, ex-vice-­presidente do Banco Mundial e o atual diretor do Centro para Macroeconomia e Desenvolvimento, de Washington. “Essa situação abre espaço para a separação, e a resistência da Alemanha enfraquece a unidade.”

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No esquema de auxílio desenhado por Bruxelas e sacramentado pelo Norte rico, 240 bilhões de euros foram liberados para os estados-membros mais afetados pela pandemia, mas para uso exclusivo na prevenção e contenção da doença. Os recursos, porém, só devem ser disponibilizados a partir de junho. O Banco Central Europeu (BCE) anunciou um programa de compra de 750 bilhões de euros em títulos da dívida soberana e de empresas dos membros da Zona do Euro ao longo de 2020. Também baixou para -0,5% a taxa básica de juros no bloco e adotou medidas para elevar a capacidade de os bancos concederem empréstimos em condições acessíveis aos empresários — uma tentativa de evitar uma quebradeira generalizada dos negócios. A preocupação é que o estímulo monetário para aumentar a liquidez de bancos e de empresas, o chamado quantitative easing, exponha a região ao limite do teto de inflação, de 2% ao ano. O FMI projeta uma alta dos preços de 0,2% para a Zona do Euro neste ano, o que traz outra ameaça, a deflação.

Na lista dos países postos de joelhos pela Covid-19, a Espanha calcula que a ajuda europeia é insuficiente para o tamanho da crise no continente e pede uma injeção de 1,5 trilhão de euros. Ursula von der Leyen está de acordo, mas segue de mãos atadas pela posição de governos mais refratários a concessões, como o de Angela Merkel. Paralelamente, os Estados Unidos, beneficiados por um pacote de 3 trilhões de dólares proposto pelo governo de Donald Trump, começam a atrair investidores até então com ativos aplicados na Europa e que procuram a segurança dos títulos do Tesouro americano. Christine Lagarde, presidente do BCE, já afirmou que “momentos extraordinários exigem ações extraordinárias”, ao buscar meios de proteção ao euro. Analistas, entretanto, consideram sua margem de manobra exígua em comparação a 2008. “A sensação é que vemos o começo do fim da União Europeia. Esta crise voltou a destacar a divisão entre os Estados do Sul e os do Norte, e o peso da hegemonia alemã”, diz Josepha Laroche, cientista política da Universidade Panthéon-Sorbonne. Ao que tudo indica, a solução para a crise passa pela convergência entre Alemanha e França, algo que até agora parece remoto.

Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685

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