Na cultura popular do norte do país, “rebujo” é um fenômeno sísmico-mítico provocado por uma cobra de proporções gigantescas, que, ao se debater no fundo do rio, traz o lodo à superfície. Os locais empregam o termo também para designar aquele segredo bem guardado que finalmente vem à tona. Por boa razão, portanto, o terceiro disco da paraense Ionete da Silveira Gama, de 79 anos, ganha o nome de Rebujo. Dona Onete, como é conhecida, só iniciou sua carreira artística aos 62 anos e esperou mais onze até lançar o disco de estreia, em 2012. Hoje é celebrada por nomes como Caetano Veloso e David Byrne e faz turnês pela Europa e pelos Estados Unidos. “Falo para o público lá: ‘É disso que o povo gosta!’. Eles não entendem, mas se divertem”, diz a cantora.
Dona Onete conta que acalentava o sonho de se tornar artista desde criança, quando cantava para os botos do rio, em Igarapé-Miri. “Existe a lenda de que os botos se transformam em rapazes sedutores, então minha família não me deixava entrar na água”, lembra a intérprete (que, por causa disso, nunca aprendeu a nadar). Aos 19 anos, ela se casou com um homem ciumento, o que atrasou seu desejo de cantar: “A gente não podia falar ao telefone como estamos fazendo agora. Ele brigava”. Onete foi professora de história e estudos amazônicos em escolas do interior. Divorciou-se depois de 25 anos de casada.
Hoje ela é uma das raras intérpretes femininas de carimbó, gênero popular dominado pelos homens. Que ninguém se engane com o jeitinho de vovozinha de seriado infantil: Dona Onete adora uma letra de duplo sentido — ainda que empregue o recurso de maneira mais sutil do que aquela que se ouve no forró ou no funk: “Brinco com o duplo sentido, mas faço questão de não chocar. Muita criança gosta da música”. “Na festa do tubarão, piranha não entra”, diz o refrão de Festa do Tubarão, uma das canções mais animadas do novo álbum. O carimbó e os ritmos paraenses são a base de Rebujo, mas a cantora também busca a diversidade de estilos. Musa da Babilônia é cantada em dueto com BNegão, rapper e cantor do grupo carioca Planet Hemp. “Sempre tive por dentro das coisas”, orgulha-se a cantora. E Dona Onete tem algum rebujo para ser revelado? “Meu filho, minha vida é um livro aberto”, ela garante. E depois acrescenta: “Mas certos capítulos eu prefiro que fiquem guardados”.
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
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