No início do século XVII, um proeminente colecionador de arte italiano incluiu o nome “Francesco, conhecido como Cecco” em uma lista de pupilos do mestre barroco Michelangelo Merisi — o genial Caravaggio (1571-1610). Foi o primeiro registro na história da arte de uma figura que desde então desperta fascínio e especulação. Modelo e aluno do pintor italiano, Cecco foi relegado às sombras por vários séculos, até que pesquisas conduzidas pelo biógrafo Gianni Papi a partir dos anos 1990 despertaram o interesse pelo estudante misterioso. Agora, uma mostra inédita com curadoria do mesmo Papi lança luz sobre o personagem peculiar. Em cartaz até junho no museu da Accademia Carrara, na Itália, Cecco del Caravaggio: o Aluno Modelo reúne, pela primeira vez, dezenove das 25 obras atribuídas ao pintor, colocando-as lado a lado com trabalhos de artistas que marcaram sua carreira — incluindo duas obras célebres de Caravaggio para as quais ele serviu de modelo. “Nas pinturas de Caravaggio, ele é o Cupido Vitorioso, e com base na semelhança podemos encontrar seu rosto em outras seis criações do mestre”, explicou o curador a VEJA.
Caravaggio – The complete works
Nascido muito provavelmente na cidade de Bérgamo, como Francesco Boneri (1580-1630), Cecco teve atuação enigmática no ateliê e na vida de Caravaggio. Tido como um rebelde que só criava conflitos, foi jogado para escanteio nos tratados históricos, o que colaborou para a aura nebulosa que recobre sua biografia. Talentoso e obstinado, ele não era, ao que consta, um simples aluno: em 1650, um viajante que passava por Roma escreveu em seu diário que Cecco era “o menino de Caravaggio”, aquele que “se deitou com ele”, indicando uma provável relação romântica entre ambos. As representações do pupilo feitas pelo mestre também apontam para uma ligação erótica: além do cupido de Amor Vincit Omnia e do sensual São João Batista, Cecco é descrito como sendo o Davi da estupenda Davi com a Cabeça de Golias, em que surge segurando a cabeça decapitada do gigante — a qual é um autorretrato do próprio Caravaggio. Para deixar a história ainda mais dramática, é possível que Cecco tenha seguido Caravaggio em sua fuga após o assassinato do procurador e mercenário Ranuccio Tomassoni, morto num duelo causado por desavenças de jogo em 1606.
Caravaggio: A Life Sacred and Profane
Para além das peripécias juvenis, Cecco é reconhecido como um artista valoroso. O historiador Roberto Longhi (1890-1970) chegou a descrevê-lo como “uma das figuras mais notáveis do caravaggismo nortista”, em referência ao Norte da Itália, celeiro de pintores renascentistas e barrocos. Além de Caravaggio, a arte de Cecco bebe da pintura de Giovanni Gerolamo Savoldo (1490-c.1548), artista nascido em Brescia, cidade vizinha a Bérgamo. Com a união das duas influências, Cecco forjou uma identidade marcada pelo naturalismo exagerado, definição de detalhes e contornos. “É uma arte precursora do hiper-realismo, caracterizada também por uma iconografia arrojada e inconformista e por imagens ambíguas”, analisa Papi.
Entre as dezenove obras de Cecco estão peças essenciais para a reconstrução de seu legado, como Purificação do Templo (1613-1615), chave na identificação de pinturas atribuídas a ele. A mostra ainda reúne 23 obras de artistas que o inspiraram ou foram inspirados por ele, vindas de diferentes museus. “É uma chance de aproximá-lo de um público mais amplo”, diz Papi. O mestre se orgulharia de seu misterioso pupilo.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827
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