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Um retrato da “masculinidade catastrófica” do governo de Jair Bolsonaro

Em Quebrando Mitos, Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira iluminam as dificuldades de um casal gay diante da intolerância promovida pelo presidente

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h10 - Publicado em 16 set 2022, 18h12
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  • Como não veio ao mundo a passeio, o cineasta Fernando Grostein Andrade se habituou a cutucar as feridas da sociedade – e poucos o fazem com tanta firmeza, mas sem perder a ternura. Em 2011, com o filme Quebrando o Tabu, ele iluminou uma questão fundamental, ao mostrar que o consumo de drogas não poderia jamais ser tratado do ponto de vista criminal, mas sim de saúde pública. Quebrando o Tabu se transformou numa das mais acessadas plataformas de direitos humanos do Brasil. Em 2017, ele assumiu publicamente sua orientação sexual – “sou um homem gay”, diz – em um vídeo veiculado em seu canal no YouTube, intitulado Cê Já Se Sentiu um ET? Ao longo de quinze minutos bem-humorados, leves mas contundentes, iluminou o processo de autoaceitação como modo de ajudar outras pessoas reprimidas, e em situações semelhantes a que viveu. Agora, com Quebrando Mitos, postado em quebrandomitos.com.br, Grostein Andrade se juntou ao marido, o cantor e ator Fernando Siqueira, e aos roteiristas Carol Pires e Joaquim Salles, para produzir um comovente, poderoso e evidentemente triste retrato do Brasil de Jair Bolsonaro, embebido de uma assustadora “masculinidade catastrófica e frágil”, como define o diretor.

    A beleza incômoda de Quebrando Mitos é unir a história recente do Brasil com a de seus criadores – e, nesse aspecto, remete ao excelente e aplaudido Democracia em Vertigem, de Petra Costa, que soube pôr o processo de impeachment de Dilma Rousseff e a trajetória de sua família em um mesmo pacote, e com sucesso. Grostein Andrade, ativo e militante, faz cinema e, simultaneamente, expõe o que pensa – e o que ele pensa anda na contramão. Seu tempo, afinal, como ensinou Carlos Drummond de Andrade, é o tempo presente. Em 2018, depois de receber ameaças de supostos apoiadores de Bolsonaro (deveria parar de falar de política, caso contrário “seu velório seria com caixão lacrado”), decidiu trocar São Paulo por Los Angeles, onde já havia estudado cinema. Era o autoexílio necessário, imposto pelas dificuldades de ser LGBT e figura conhecida no país de um presidente que nunca recuou em sua peroração preconceituosa, misógina e machista.

    Quebrando Mitos é a um só tempo retrato pessoal de Grostein Andrade e Siqueira e coletivo dos quatro anos promovidos pelo discurso de Bolsonaro. Para a audiência brasileira, é um modo de relembrar, de modo organizado e cronológico, o tempo de insensatez – a apologia do machismo; o ataque às políticas de proteção ao ambiente; a promoção das milícias; o descaso irresponsável com a pandemia; a transformação da fé dos evangélicos em massa de manobra; e o culto às mentiras como atalho para ascensão nos corredores de Brasília, até a eleição de um deputado apagado como presidente da República. Está tudo ali, a ponto de doer. A grandeza é pontuar a aridez com a intimidade, a rua com a vida doméstica, numa narração em off sem exagero, modesta (na versão em inglês, a voz é de Siqueira). Para pessoas de outros países – e não há dúvida do interesse de alcançar essas populações, nos Estados Unidos e na Europa –, o filme tem o dom de revelar o cotidiano de um Brasil esgarçado, sobre o qual se lê aqui e ali, mas sem detalhes. Quebrando Mitos pode vir a ter o efeito, internacional, das produções caseiras que, no início dos anos 1970, circulavam fora do país como forma de denúncia dos episódios de tortura do regime militar. Não há como ver o Brasil de Bolsonaro com condescendência depois de Quebrando Mitos. Os críticos dirão que Bolsonaro nunca apontou o dedo diretamente para Grostein Andrade e Siqueira, e que não haveria nada que os obrigasse ao degredo. Eis um ponto pernicioso da gestão Bolsonaro: ela alimenta posturas odiosas, cerceia as ideias de quem pensa diferente e pretende levar a vida como bem quiser. Não é fácil, enfim, ser homem gay no Brasil de hoje. É esse o tom que atravessa a denúncia de Quebrando Mitos. E, como confirmação do trabalho que os diretores desenvolviam, Bolsonaro soltou seu lamentável e inesquecível “imbrochável” no 7 de setembro – a tempo de ser incluído no filme como corolário de uma postura constrangedora.

    Não bastasse o nítido recado público do filme – um manifesto necessário como registro de uma página infeliz da nossa história –, ele poderia ser celebrado também pela coragem de Grostein Andrade, colunista de VEJA, ao revelar ter sido estuprado duas vezes, aos 14 e aos 28 anos de idade, além de ter sido forçado a perder a virgindade com uma coelhinha da Playboy aos 17. Quebrando Mitos é obrigatório. Tem história que um dia dormirá nos livros e enciclopédias, mas tem também a sensibilidade de tocar no que sempre soou tabu, mas que não pode mais: a repressão, por vezes silenciosa, imposta ao grupo LGBT. Vale, portanto destacar um comentário do próprio Grostein Andrade a respeito do documentário, instado a dizer por que decidiu produzi-lo: “A ideia é desnudar a estrutura de masculinidade catastrófica e dizer, ao mesmo tempo, que a masculinidade pode ser uma coisa linda. Eu sou um homem gay e tenho admiração pelo masculino. Então não estou fazendo, de maneira nenhuma, uma agressão ao homem. Eu só quero apontar que a masculinidade não precisa ser catastrófica, ela pode ser poética, ela pode ser bonita. Não estou falando que os homens não têm que participar do poder. Estou dizendo que o poder precisa ser repartido. Quando todo mundo olha uma coisa pelo mesmo lado, todo mundo só enxerga o mesmo ângulo. Quem perde é a sociedade, porque eliminamos assim a inteligência coletiva.”

    Clique aqui para assistir a Quebrando Mitos.

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