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Morte assistida de Antonio Cicero reacende o debate em torno do tema

Trata-se de uma questão delicada e vital

Por Ligia Moraes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 nov 2024, 12h27 - Publicado em 1 nov 2024, 06h00
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  • Foi bonito como um verso de palavras exatas, sem sobras, ao feitio de João Cabral de Melo Neto. Na quarta-feira 23, o poeta, filósofo e letrista de canções Antonio Cicero provocou comoção com uma carta póstuma, de despedida — um poço de consciência —, que escrevera horas antes, divulgada por seu marido, o figurinista de teatro, cinema e televisão Marcelo Pies, com quem vivia havia duas décadas (leia abaixo). “Queridos amigos, encontro-me na Suíça prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. (…) Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido o bastante para reconhecer minha terrível situação. (…) Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.”

    Lamentou-se, com justo eco, a perda, aos 79 anos, de um dos grandes intelectuais brasileiros de nosso tempo, um dos poucos a costurar a cultura pop com a erudição, Caetano Veloso com Descartes. Mas houve estrondo sobretudo por Cicero ter escolhido o caminho da morte assistida em uma clínica da Suíça, país em que o procedimento é legalizado. Não foi, como anotou no bilhete, eutanásia, em que o desfecho seria comandado por médicos — foi ele mesmo quem ingeriu a substância que o levaria a parar de respirar (veja as diferenças dos métodos e países que os aprovam no quadro). Nenhum dos dois recursos é praticado no Brasil. Há imenso tabu em torno do livre-arbítrio para pôr fim à vida. E ainda que se deva, por óbvio, respeitar as convicções — por vezes éticas, quase sempre religiosas e, fundamentalmente, individuais — de quem não aceita a ideia, Cicero mexeu em vespeiro necessário e delicado. Ele próprio, aliás, em 2008, dera o tom da prosa em um artigo na Folha de S.Paulo: “Sei que ‘enquanto há vida, há esperança’. Mas reflitamos. Enquanto há vida, há esperança de quê? De mais vida. O que importa, porém, é a qualidade dessa sobrevida. Como já dizia Sêneca, o sábio vive tanto quanto deve, não tanto quanto pode, pois o que lhe importa é a qualidade, não a quantidade de vida. Ora, se nem sempre a melhor vida é a mais longa, sempre a mais longa morte é a pior”.

    arte eutanásia

    É crucial deixar claro, para a riqueza do debate, que mesmo entre os que são contra o recurso derradeiro numa clínica, o suicídio é evento radical, diferente do suicídio assistido por profissionais de medicina. Um modo de entender as assimetrias é iluminar a maneira como a sociedade zela pelos riscos inerentes à divulgação das variadas modalidades de mortes. A jornalista Juliana Dantas, diretora de comunicação do movimento inFINITO e diretora do Instituto Ana Michelle Soares, em artigo publicado em primeira mão pelo site de VEJA, esmiuçou as sutilezas. “A suicidologia entende que o suicídio é um evento tão impactante que pode haver comportamento por contágio. O mais conhecido é negativo: o efeito Werther. Com o nome do personagem principal do livro mais célebre de Goethe, o fenômeno busca explicar pessoas que tomam a decisão definitiva do suicídio a partir de identificação com os motivos ou a personalidade de alguém que morreu por suicídio. Em contrapartida, a leitura do efeito Papageno, aí inspirado na obra de Mozart, revela que uma conversa aberta, honesta e responsável sobre suicídio pode inibir o comportamento de quem estava considerando tirar a própria vida.”

    Nesse aspecto, as luzes em torno de Antonio Cicero são um aceno ao conhecimento — e nunca é demais incentivá-lo, inclusive para que se decida dar mais um tempinho ao tempo, apesar do sofrimento. “Aprender a morrer, filosoficamente falando, é parte de um processo contínuo de questionamento e busca de sentido provisório na vida. Isso é fundamental para lidarmos com a finitude da existência humana”, diz Eloisa Benvenutti de Andrade, filósofa e docente da Faculdade Cásper Líbero. Para ela, as leis devem ser discutidas, embora regiamente respeitadas, porque “é absurdo pensar que o Estado tenha controle sobre o corpo do indivíduo a ponto de decidir se ele pode ou não encerrar a própria vida. Isso também se aplica ao aborto. Em ambos os casos, o corpo do sujeito se torna propriedade do Estado, que impõe regras e retira o valor intrínseco da pessoa”.

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    “DR. MORTE” - O americano Kevorkian: condenado por assassinato em 1999
    “DR. MORTE” - O americano Kevorkian: condenado por assassinato em 1999 (Richard Sheinwald/AP/Imageplus/.)

    Não há crescimento sem obstáculos e tampouco seria o caso de ignorar o incômodo da discussão, mas legalizar a morte assistida seria uma forma de oferecer opções a quem enfrenta doenças graves. Países laicos têm mais facilidade em discutir o assunto, ao contrário do Brasil, onde a religiosidade ainda desempenha um papel significativo na legislação. No cenário internacional, há um movimento crescente pela regulamentação da morte assistida desde 2019, com avanços na Nova Zelândia, em vários estados dos Estados Unidos e na Austrália, além de uma decisão da Suprema Corte do Equador e mesmo em países com forte tradição cristã, como Espanha e Portugal. “No Brasil, é comum associar a morte digna ao cuidado paliativo, mas é relevante reconhecer que isso não é suficiente para todos”, diz a advogada e bioeticista Luciana Dadalto. “Para algumas pessoas, a morte assistida é o que configura uma morte digna, e a legalização permitiria uma escolha mais ampla para quem enfrenta problemas insuperáveis de saúde.”

    Vai de cada indivíduo, de cada circunstância, do que é feita a vida, afinal, mas é certeza de ser resolução que provocará espanto e tristeza, antes da razão. Há personagens, no longo fio do debate, indissociáveis dos avanços, cujas trajetórias precisam ser revisitadas. Em 1999, o americano Jack Kevorkian, apelidado de “Dr. Morte”, foi condenado por assassinato depois de injetar uma dose letal em um homem com esclerose lateral amiotrófica, em um ato transmitido pela televisão. Embora ele tenha passado oito anos na prisão, seu ativismo ajudou a promover as altercações públicas sobre o suicídio assistido, contribuindo para mudanças legais. Em 2005, um tribunal da Flórida determinou a remoção do suporte de vida, depois de anos de impasse e sucessivas tentativas de intervenção política, de Terri Schiavo, uma americana que sofrera parada cardíaca quinze anos antes e vivia em estado vegetativo. O marido da moça, Michael Schiavo, virou ícone do direito pela dignidade, ao dizer que a esposa relatara, antes do trauma infindável, a vontade de não sofrer em vão.

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    2005 - “Salve Terri”: desligar ou não o suporte de vida da jovem em coma?
    2005 - “Salve Terri”: desligar ou não o suporte de vida da jovem em coma? (Scott Olson/Getty Images)

    A despedida de Antonio Cicero tem esse dom de fazer andar a roda, com solavancos, sim, mas iguais doses de delicadeza, como aliás mostra o belo filme O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar. Carmen Barroso, renomada cientista social brasileira, premiada pela ONU, viveu quadro semelhante, com a morte assistida do marido, Derli, aos 85 anos, em maio passado. Depois de uma cirurgia em 2003, ele começou a ter problemas com uma válvula do coração e dificuldades de irrigação do cérebro. Decidiu, então, abreviar a vida, em Portland, nos EUA. “Em concertos, especialmente os de Mahler, cuja música ele amava, sinto saudade, carência, ausência e a tristeza de que ele não esteja mais vivo e saudável para desfrutar dessas experiências. Mas penso que se estivesse vivo, com as debilidades que o acometiam, ele também não poderia aproveitá-las”, diz Carmen. Em vez de ser cremado, ele optou por um processo que transforma o corpo em fertilizante. Hoje, Derli é lembrado por uma figueira adubada com o composto de seu organismo, que agora cresce diante da janela da família, frondosa e bonita. “Simboliza a continuidade da vida e o ciclo natural do universo”, resume Carmen. É duro, mas é real. Precisamos falar de morte assistida.

    “Claro que não, não seja bobo”

    O poeta e filósofo Antonio Cicero não temeu o desfecho, segundo seu marido, o figurinista de teatro, cinema e televisão Marcelo Pies

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    DESPEDIDA - Cicero (à esq.) e Pies: três dias em Paris e Zurique, na Suíça
    DESPEDIDA - Cicero (à esq.) e Pies: três dias em Paris e Zurique, na Suíça (./Arquivo pessoal)

    “Passamos os dias anteriores à morte de Cicero nos despedindo de Paris. Fomos flanar nos arredores dos bulevares St. Michel e St. Germain e na Sainte-Chapelle, lugar também preferido do pai de Cicero, o economista Ewaldo Correia Lima. Almoçamos no restaurante Georges, que fica dentro do Centre Pompidou e tem uma vista linda da cidade, depois de vermos a exposição sobre o movimento surrealista. Jantamos, numa noite, no restaurante L’Atelier, de Joël Robuchon, e, na outra, na Brasserie La Coupole.

    No dia 21 de outubro, já em Zurique, tivemos uma longa conversa, prevista pela lei, com o médico suíço que acompanharia o processo. Saímos para jantar na Brasserie Lipp, uma franquia do restaurante original da belle époque parisiense. No dia seguinte, voltamos a conversar com o médico. No dia 23, quarta-feira, duas mulheres muito simpáticas, de uns 45 anos, que trabalham na Dignitas — a associação sem fins lucrativos que oferece os serviços de eutanásia e suicídio assistido —, nos receberam na recepção do hotel para nos encaminhar para a casa (eles chamam de apartamento), a cinco minutos a pé da hospedagem, na comuna de Pfäffikon, a vinte minutos de carro do centro de Zurique. Falavam inglês perfeitamente. Mais uma vez, repetiram os esclarecimentos que o médico já tinha nos passado a respeito dos procedimentos para o suicídio assistido. Cicero tomou um comprimido antináusea e nos deram trinta minutos sozinhos para a última despedida. A casa é discreta, pequena, aconchegante, com aparência de nova, pintada por fora de azul acinzentado. Ficamos sentados no sofá, lado a lado, conversando sobre a boa vida que ele e eu tivemos juntos. Perguntei se ele estava com medo e ele me balançou a cabeça negativamente, com cara de quem diz: “Claro que não, não seja bobo”.

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    Entraram com remédio, colocaram no copo, e Cicero, já sentado na cama de hospital, com encosto levantado, no centro da sala, tomou em apenas dois goles. Em seguida, comeu um pedaço de chocolate suíço amargo com fleur de sel, pois o gosto da substância é amargo. Peguei na mão de Cicero e em três minutos ele adormeceu. Cerca de quarenta minutos depois, parou de respirar. Morreu mais ou menos às 11, hora local. No Brasil eram 7 da manhã. Fui para o hotel e passei a notícia aos amigos.”

    Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917

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