De uns tempos para cá, a boa e velha quitinete passou a ser chamada de “studio” nos anúncios imobiliários. Continua mínima, até menor que as originais, com a cozinha e o banheiro praticamente amontoados na cabeça do futuro morador. Mas… dizer “studio” é mais chique, não? Assim como “loft”. A palavra, nos Estados Unidos, refere-se a moradias que reaproveitam antigos espaços industriais, com tijolos e encanamentos à mostra. Hoje vejo anúncios de “lofts” aqui no Brasil, mas os que conheci até agora são simplesmente espaços sem paredes, com um quarto no mezanino, e uma escadinha desconfortável. A linguagem está dando um tom de luxo para o que, frequentemente, é uma picaretagem. Já vi, por exemplo, “caviar de berinjela”. Procurei as receitas, todas passam longe do caviar. Também fui a um restaurante onde me serviram “carpaccio de abobrinha”. Nada mais era que a própria crua, cortada em fatias finíssimas, e temperada com azeite. A preço de iguaria.
Quando foi que o presidente de uma empresa virou “CEO”? Dá uma aparência renovada e internacional ao mesmo cargo de sempre. Assim como empresas em início de operação viraram “startups”. Em vez de pedir para alguém esperar um pouco, ou aguardar uma oportunidade… “stand by”! São muitas, muitas as palavras sendo substituídas por termos que lhes dão uma aura especial.
“A linguagem está dando tom de luxo para o que pode ser uma picaretagem. Já vi até ‘caviar de berinjela’ ”
Grada Kilomba, portuguesa, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, autora de Memórias da Plantação, escreveu uma introdução especial à edição brasileira. Argumenta que, em inglês ou alemão, existem palavras neutras, que em português adquirem um gênero. Por exemplo, “subject” para nós é traduzida como “sujeito”, no caso um termo masculino. Para ela, a língua portuguesa é fortemente colonialista e, à medida que estabelece vocabulários, mantém relações de poder. “Cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” — diz ela. “A língua informa-nos constantemente de quem é ‘normal’ e de quem é que pode representar ‘a verdadeira condição humana’ ”. Ela faz pensar.
Tendências como a gourmetização não são absolutamente inocentes. Acabam sendo uma maneira de trocar gato por lebre, já que as coisas continuam exatamente como estavam — como o exemplo da quitinete que vira “studio”. Muita gente já nem usa a palavra telefone, mais chique não é pedir o iPhone?
A linguagem sempre está em movimento, e faz parte disso a introdução de novos vocábulos. Mas até onde isso vai? A comida por quilo, em vez de “quilão”, tão simpático, virou “self-service”. Já o menu degustação pelo menos não é uma mentira. Há pratos do tamanho de uma unha. O termo “degustação”, elegantérrimo, é para avisar que só se vai servir porções mínimas.
A própria palavra gourmet é francesa, contrabandeada para nosso vocabulário. Serve para designar o apreciador de boas comidas e bebidas. Mas aqui virou uma coisa elegantíssima. Mesmo que o gourmet, na maioria dos casos, seja simplesmente um guloso de barriga grande capaz de chupar as perninhas de um caranguejo diante de todo mundo.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792