Era agosto de 2019, lembro-me muito bem. Estava no sinal vermelho de um dos dois semáforos de Bled, cidadezinha eslovena onde escolhi viver, e aumentei o volume do radinho do velho carro que eu tinha — um Nissan que àquela altura já era maior de 18.
Pela primeira vez, ouvia nesse idioma que me era completamente ininteligível algumas palavras familiares: Amazônia e Jair Bolsonaro, ou variações disso, já que estamos falando de uma língua com seis declinações das quais não escapam nem sequer nomes próprios.
Para um forasteiro como eu, e hoje somos mais de 4,5 milhões pelo mundo, diz o Itamaraty, ouvir sobre o Brasil no sem-querer do dia a dia tem um quê de banzo, de nostalgia. E de dor. No meu caso, pude entender pelo contexto — e porque enfim não vivo em Marte encapsulado e sem notícias da Terra — que a notícia não era boa.
Naquele mês de agosto foram 6.145 focos de queimada na mais importante floresta do planeta, então um recorde negativo desde o início da série histórica. Era o primeiro agosto da naturicida gestão Bolsonaro, e agosto, com sua secura típica do inverno brasileiro, costuma mesmo ser o pior mês para a ocorrência de incêndios florestais. Em bom português, basta juntar lé com cré para entender que, enfim, era preciso abrir alas para a boiada passar.
Cheguei em casa buscando notícias, querendo entender o que havia ouvido minutos atrás. Do outro lado do Atlântico, era meu país que queimava. O verde da bandeira.
Ironicamente, o mesmo verde que andava em baixa dentre os defensores do meio ambiente. Ironicamente, a mesma bandeira que era exaltada de um jeito orgulhoso pelos apoiadores daquele governo, “nossa bandeira jamais será vermelha”.
O verde virou fuligem
“”
Engana-se quem pensa que é complicado explicar somente a política da terra brasilis para um estrangeiro. Penso que é complicado explicar qualquer política de qualquer país para qualquer cidadão que não seja desse país — mais difícil ainda se a pessoa nunca pisou nesse país, não lê nada sobre esse país, não sabe nada sobre a história desse país.
Ao longo dos meus primeiros quatro anos na Eslovênia, foram pouquíssimas as interações com novas pessoas que, ao saberem que eu era brasileiro, não expressavam na terceira ou quarta frase um sentimento de “meus pêsames”, de “sinto muito”. E a questão levantada não era nosso passado escravocrata, não eram nossos índices altíssimos de violência urbana, não era a vergonhosa discrepância social em que se baseia nossa sociedade. Era Jair Bolsonaro.
Essas ocorrências banais me faziam sofrer duplamente, admito: por causa do mal em si e por causa da vergonha que me acometia. Incrivelmente, quando eu contava isso a amigos e familiares, algumas vezes ouvia, mais de familiares do que de amigos, aquela indagação que se tornou quase um meme: “mas e o PT, hein?!”.
E aqui vai mais uma lição básica que aprendi nesses anos de degredado. Para o mundo estrangeiro, não importam os escândalos de corrupção, tenham eles acontecido ou não. Simplesmente não importam. Para o mundo estrangeiro, roubalheira é problema nosso — em suma, é mesmo: afinal qualquer corrupção da máquina pública consome indevidamente o dinheiro de nossos impostos e dilapida o patrimônio nacional.
Mas mexer com a Amazônia, neste século 21 de catástrofe climática, é botar em risco a humanidade. A bandeira não ficou vermelha, mas o verde virou fuligem.
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