O fim do ambiente mais anacrônico e constrangedor das residências
Antes tarde do que nunca, plantas dos imóveis vão apagando vestígios lamentáveis do passado
Dentre as coisas mais absurdas ainda presentes no mercado imobiliário brasileiro, a mais surreal e anacrônica é o espaço nas residências batizado como “quarto de empregada”, um hábito que existe há décadas e é vestígio dos tempos de escravidão. A boa noticia é que, cada vez mais, ainda que de forma lenta, esses espaços começam finalmente a ser suprimidos nos novos empreendimentos ou resignificados nas residências.
Existem algumas razões para essa leve mudança no mercado, sendo que a maior delas é o reflexo direto das novas leis trabalhistas, que acabaram com a informalidade nas relações entre as profissionais e as famílias contratantes. Isso fez muita gente repensar em manter os espaços como dormitório para prestadores de serviço. A Lei complementar 150 de 2015, chamada da Lei da Doméstica, estabeleceu que a jornada semanal da categoria profissional não pode ultrapassar 44 horas semanais, sendo 8 horas de trabalho por dia, com intervalos de 30 minutos até 2 horas para almoço . O não cumprimento dessa jornada, com mais horas trabalhadas, enseja o pagamento de horas extras.
Antes da regulamentação dessa lei e da emenda constitucional numero 72 de 2013, as empregadas domésticas eram bastante desamparadas legalmente e, em casos extremos, a relação era quase de trabalho escravo, com longas jornadas de labuta e nenhuma proteção. Como muitas moravam nas residências em que trabalhavam ou viviam praticamente o dia inteiro no local de trabalho, foi normatizada a existência de espaços reservados para elas viverem. Ainda que o imóvel fosse enorme e luxuoso, os dormitórios das funcionárias comumente era bem diferente dessa realidade: em geral, ficavam nas áreas de serviço, perto da lavanderia ou das lixeiras, em espaços mínimos, muitos em condições degradantes ou sem ventilação.
NOVOS TEMPOS
Infelizmente, essa realidade perdurou por décadas. Com as novas regulamentações e correndo o risco de sofrerem no bolso a consequência de ações trabalhistas, muitas pessoas optaram por terem a ajuda de funcionários domésticos apenas durante o horário comercial, sem mais a necessidade de dormir ou mesmo apenas por alguns dias da semana. Com isso, os quartos de empregada começaram a ter outra função na casa, transformando-se em escritório, depósito ou sendo integrado a outro ambiente, ampliando o imóvel de uma forma geral.
Outra razão que vem reduzindo o número de quartos de empregada Brasil afora é também de ordem econômica. O poder de compra do brasileiro diminuiu e os valores dos imóveis aumentaram. O resultado da soma desses dois fatores é que as famílias tem comprado apartamentos mais compactos, nos quais não cabe a inclusão de um novo dormitório para uma funcionária.
As famílias que ainda precisam manter empregadas domésticas em regime de jornada noturno, seja como babás, cuidadoras de idosos ou mesmo porque a própria funcionária opta por dormir na residência, precisam estar atentas a registrarem o cumprimento da jornada para evitar possíveis ações trabalhistas, além de terem o cuidado de prover às empregadas espaços arejados e confortáveis, por questões legais e humanitárias. Não cabe mais, em pleno 2024, continuar existindo uma realidade tão segregada e preconceituosa fielmente simbolizada nos quartos de empregada de antigamente, onde mulheres e, muitas vezes, famílias, viviam em cubículos praticamente insalubres 24 horas à disposição de uma família sem nenhuma assistência ou cuidado.
A existência de quarto de empregada não é uma realidade apenas do Brasil. Alguns países da América Latina, como Colômbia e Chile registram residências com quartos exclusivos para usos de trabalhadores domésticos e as casas de famílias ricas em países na África e Oriente Médio também possuem esse tipo de configuração. Lá fora, no caso brasileiro, continua sendo motivo de surpresa quando europeus e americanos se deparam com imagens de plantas de apartamento com a indicação de quarto e banheiro de serviço.
Ainda bem que esse tipo de “solução” está perdendo cada vez mais espaço por aqui. Como diz o ditado, antes tarde do que nunca.