O espantoso (e lucrativo) mercado dos duetos póstumos de grandes artistas
O avanço da engenharia sonora e a chegada da inteligência artificial impulsionam o filão
Uma distância colossal de público e estilo separa a brasileira Marília Mendonça da americana Aaliyah. Enquanto a artista nacional consagrou-se como musa da sofrência sertaneja, a estrangeira era uma estrela em ascensão do r&b. Ambas saíram de cena, contudo, do mesmo modo triste — Aaliyah morreu num acidente de avião em 2001, aos 22 anos, e Marília teve destino idêntico em 2021, aos 26. E algo mais as conecta hoje: mesmo após morrerem, suas vozes continuam mais presentes do que nunca. Às vezes, de um modo até bastante perturbador. Desde a tragédia aérea, Marília domina o Top 10 dos streamings musicais no país — no momento, com uma série de registros ao vivo. Em razão de um imbróglio entre seus herdeiros, a obra de Aaliyah permaneceu por anos longe do Spotify e cia. Mas agora voltou com toda a força, graças a um expediente que resume as extravagâncias desse lucrativo mercado: os duetos póstumos.
Típico produto da bruxaria de estúdio, o dueto póstumo não apenas garante uma segunda vida a esses artistas: permite novas e surpreendentes parcerias, com que talvez o homenageado nunca sonhasse. Um disco a ser lançado neste ano apresentará duetos de Aaliyah ao lado de outros cantores vivos, como os rappers Drake e Snoop Dogg. Em dezembro, o primeiro single do pacote, Poison, unindo sua voz à do canadense The Weeknd, foi alçado aos primeiros lugares das paradas de R&B da Billboard.
No Brasil, o sertanejo Cristiano Araújo, morto em um acidente de carro em 2015, é outro ídolo falecido que tem se mostrado prolífico. Em breve, será lançado um álbum só com dobradinhas além-túmulo de Cristiano, com participação do irmão Felipe Araújo e da dupla Bruno & Marrone. Um aperitivo do disco saiu recentemente e já soma 12 milhões de execuções na internet, ajudando a entender de onde se extraem tantas novidades de artistas que já morreram — e as razões do gênero sertanejo ser tão pró-ativo nessa seara. O single Tempo ao Tempo, de Jorge & Mateus, teve a voz de Cristiano inserida após seu produtor, Blener Maycom, encontrar uma gravação do artista feita em seu estúdio. “Quando o sertanejo está em início de carreira, ele passa um bom tempo gravando músicas, e muitas não são aproveitadas. É por isso que temos tanto material inédito”, diz Maycom. “Ainda estou reunindo forças para fazer esse projeto, mas ele tem muita música para ser lançada”, admite o pai do cantor, João Reis.
Carlos, Erasmo – Erasmo Carlos [Disco de Vinil]
Se tudo der certo, o projeto elevará a ideia do dueto póstumo à máxima potência: a junção artificial de dois mortos famosos. Conforme apurou VEJA, os respectivos espólios têm negociações avançadas para permitir a combinação das vozes de Cristiano e da própria Marília Mendonça na canção De Quem é a Culpa, gravada separadamente por ambos e um imenso sucesso na voz da cantora. Os fãs virão abaixo — e claro que a ideia é ouro puro do ponto de vista comercial. Até a obra do Tremendão deve pegar carona na onda em breve. Ainda em fase embrionária, há o projeto de um álbum de duetos de Erasmo Carlos aguardando apenas a autorização dos herdeiros. O músico morreu no fim do ano passado pouco depois de lançar o trabalho O Futuro Pertence à … Jovem Guarda — sabe-se que ainda tinha canções não lançadas no baú.
2041: Como a inteligência artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas
Além de manterem viva a memória do artista, as parcerias não raro servem para dar uma forcinha para os vivos. Ao se associar a uma estrela que já morreu, o cantor ganha projeção líquida e certa. A tática, aliás, não é novidade. Já em 1978 um poema declamado por Jim Morrison (1943-1971) foi musicado pelos colegas da banda The Doors. De lá para cá, algumas parcerias se revelaram tocantes, como a de Nat King Cole com a filha Natalie Cole, em Unforgettable (1991), e a que uniu Lisa Marie Presley ao pai, Elvis Presley, em Don’t Cry Daddy (1997). O roqueiro foi um dos que mais tiveram sua voz exumada, com gravações com Barbra Streisand, Susan Boyle e Céline Dion. Mas Elvis não foi páreo para Michael Jackson nesse quesito: o maior dos arrasa-quarteirões póstumos foi Love Never Felt So Good, em que Michael “cantava” com Justin Timberlake, em 2014. Quando o original foi gravado, em 1983, Timberlake tinha só 2 anos.
Com o avanço da tecnologia, a tendência é ver duetos ainda mais arrepiantes. Em 2012, Snoop Dogg demonstrou quanto reviver os mortos pode ser mórbido, ao dividir o palco com um holograma do rapper Tupac Shakur, assassinado em 1996. No ano passado, após Peter Jackson desenvolver novas técnicas para restaurar gravações dos Beatles, Paul McCartney fez um emocionante dueto com John Lennon na música I’ve Got a Feeling durante o festival de Glastonbury, na Inglaterra. Agora, a inteligência artificial põe em voga uma nova e assombrosa possibilidade: a recriação da voz do morto para interpretar músicas que ele jamais cantou. Em 2021, o cantor sul-coreano Kim Kwang-seok, que morreu há 27 anos, teve sua voz refeita por um software e reproduzida numa canção inédita. Nunca as vozes do além fizeram tanto barulho.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835
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