Tem quem se refira à “maldição que persegue os presidentes do Peru”. Mas os motivos não têm nada de paranormais: corrupção, instituições fracas e o que já foi chamado de hiperpartidarismo explicam a sucessão de cinco presidentes cassados ou catapultados do poder em seis anos.
O sexto lugar pode vir a ser ocupados pela atual presidente, Dina Boluarte, protagonista de uma nova ópera bufa da política peruana: a espetaculosa invasão, sob mandato judicial, da residência particular dela e da ala particular do palácio presidencial, em busca de pelo menos quatro relógios da marca Rolex identificados em seu pulso. A porta da casa foi arrombada por policiais da Divisão de Investigações de Alta Complexidade – um braço criado para casos de organizações criminosas estrangeiras, com agentes treinados pelos Estados Unidos.
Outras fotos levantadas da presidente mostraram joias incompatíveis com seus rendimentos de funcionária de um cartório de registros até 2021, incluindo uma pulseira Cartier da coleção Love, aquela que simula uma algema com chave e parafusos. O modelo visto com ela, de ouro amarelo com 204 brilhantes cravejados, começa em 52 mil dólares.
A presidente reconheceu apenas ser dona de um Rolex, comprado com economias próprias há muito tempo. Mas um dos modelos identificados em seu pulso é um Oyster Perpetual Datejust 31, de ouro rosê e aço, lançado recentemente. Valor: mais de 14 mil dólares. Dina Boluarte vai prestar um depoimento na sexta-feira. Poderia apresentar o certificado com a data de fabricação do relógio famoso?
“EMPREGO CONFORTÁVEL”
É bastante improvável. Se tivesse a comprovação, deveria tê-la mostrado antes. Com a boataria que o caso obviamente provocou, corre que ela convocou assessores para procurar modelos falsos de Rolex e, assim, alegar o contrário do que fazem as pessoas normais: apresentar relógios verdadeiros como se fossem cópias. Nenhum relógio foi encontrado nas operações policiais, mas um certificado de garantia de um Rolex de ouro branco traz a data de 8 de julho de 2023.
Outro boato: o caso foi provocado por vingança pelo ex-primeiro-ministro Alberto Otárola, obrigado a se demitir depois de um áudio em que aparece declarando amor a uma jovem a quem prometia um emprego “bem pago e confortável”.
A investigação do Caso Rolex levou à revelação de que a presidente tem onze contas bancárias com valores equivalentes a mais de 250 mil dólares, outro tijolo na construção da acusação de enriquecimento ilícito.
São indícios consideráveis de que a “maldição” tem explicações bem conhecidas, embora a lista impressione. São cinco presidentes em seis anos, excluindo-se da lista um ex, Alan García, que se suicidou em 2019 quando a polícia chegava para prendê-lo. Dois foram enquadrados pelo Congresso na categoria incapacidade moral permanente, uma original criação peruana. Vários casos estão conectados a contribuições não contabilizadas da ex-Odebrecht. Ironicamente, para nós, as acusações contra nada menos que 184 pessoas são feitas pela chamada Equipe Especial Lava Jato.
O respeitado Pedro Pablo Kuczynski, um economista de reputação internacional, durou um ano e oito meses. Seu substituto, Martín Vizcarra, tentou a manobra de dissolver o Parlamento e acabou com o impeachment aprovado. O parlamentar Manuel Merino foi presidente por oito dias. O colega Francisco Sagati conseguiu completar o mandato tampão, passando o poder no prazo regulamentar a Pedro Castillo.
“MÃOS LIMPAS”
Seu lema – “Não pode haver pobres num país rico” – era bom, mas o líder sindical de origem humilde ficou imobilizado no poder, acossado pelo fujimorismo e por atos de corrupção comparativamente irrelevantes. Tentou o autogolpe – sem apoio político nem militar.
Acabou preso em Barbadillo, a “penitenciária dos ex-presidentes”. Divide o recinto prisional com Alejandro Toledo, extraditado pelos Estados Unidos para responder a acusações de corrupção. Outro ex-presidente, Ollanta Humala, está em processo por lavagem de dinheiro juntamente com a mulher, Nadine.
Dina Boluarte era a vice-presidente de Pedro Castillo. Saída de um partido de extrema esquerda, prometia que “iria junto” se ele caísse. Não só não foi como trocou de lado. Passou a governar com o apoio de partidos de direita, de centro e do fujimorismo (cujo criador foi anistiado por ela e hoje, aos 85 anos, faz campanha pela reabilitação via TikTok).
Esse apoio pode garantir a sobrevivência da impopular presidente, transformada em inimiga mortal da esquerda, embora nada seja garantido na altamente instável realidade política do Peru.
“Entrei no palácio com as mãos limpas e sairei com as mãos limpas”, disse ela. Mas a mão encimada pelos relógios Rolex pode colocá-la numa enrascada sem saída. Mesmo depois da operação policial, cuja legalidade contesta, ela apareceu com o Rolex de ouro branco e aro de diamantes, coisa de 22 mil dólares.
A paixão dos poderosos por relógios caros é uma síndrome conhecida na vida política de muitos países. No Peru, com sua “maldição” sempre rondando, ela fica mais perigosa.