Enfim, depois de uma espera de quase 20 anos, chega ao Brasil uma edição do monumental Graça Infinita (Cia. das Letras, 1.144 páginas, 111,90 reais em papel ou 39,90 em e-book), do escritor americano David Foster Wallace1. Nesta obra, o adjetivo monumental pode ser entendido em seus múltiplos significados: com mais de 1.100 páginas (impressas em letras pequeninas) e quase 1,5 quilo, a obra é enorme em tamanho, peso e importância. Lançado em 1996, o livro é, segundo críticos respeitados, talvez o título mais influente da literatura americana das últimas décadas, desde o lançamento do On the Road, em 1957, de Jack Kerouac, marco do movimento beatnik. A influência de Graça Infinita é oceânica e está longe de ser totalmente compreendida apenas pela atual geração. A influência da obra ora aparece marcante como ondas bravas em um mar revolto – como nos livros dos escritores Jonathan Franzen, Jennifer Egan e George Saunders. Ora aparece como uma referência ao fundo, quase silenciosa, mas impossível de ser ignorada de tão grande – como um mar em estado de calmaria.
A trama do livro se passa em um futuro indefinido, mas não muito distante dos dias atuais, e os Estados Unidos, Canadá e México formam a Organização das Nações da América do Norte (Onan), o calendário tradicional foi substituído por anos patrocinados por empresas (Ano do Whopper; Ano da Fralda Geriátrica Depend e assim por diante). Nesse futuro distópico, três núcleos abrigam as muitas histórias que dão forma ao romance: a Academia de Tênis Enfield (ATE), a clínica de reabilitação Ennet, e um grupo de separatistas quebequenses que lutam pela independência do Quebec da Onan.
A vida e a obra de James O. Incandenza representam o fio condutor da narrativa – ou o espectro que assombra toda a história, como o fantasma do pai de Hamlet, na obra homônima do bardo inglês. Incandenza é o patriarca de uma família tão emocionalmente atrapalhada quanto interessante e cativante. Ele é um ex-físico ótico de sucesso que fundou a ATE e se aventurou numa carreira cinematográfica après-guarde. Sua mulher, Avril, é uma canadense de beleza estonteante e personalidade difusa – uma parede intransponível de correção, disciplina e frieza. Eles têm três filhos: Orin, o mais velho, é um jogador profissional de futebol americano meio aparvalhado; Mario é um cinegrafista com inúmeras limitações físicas e mentais, mas com muita sensibilidade; e Hal, o caçula, é um jovem adolescente superdotado e um talentoso jogador de tênis. Hal e Mario vivem na ATE, que além de academia de tênis é um colégio em regime de internato muito respeitado (e vizinho da clínica de reabilitação Ennet).
Descontentes com a Onan, que transformou parte do Canadá em um imenso depósito de lixo, os separatistas deficientes quebequenses – eles têm diferentes limitações e usam cadeiras de rodas – tentam se apossar de uma das obras de James Incandenza para usar como arma: um filme chamado Graça Infinita2 que, de tão magnético e agradável, transforma os espectadores em pessoas letárgicas e inanimadas, matando-as. Enquanto os separatistas tentam se aproximar da família Incandenza, inúmeras histórias vão se desdobrando nos núcleos do romance. E é aí que o gênio de Foster Wallace emerge com uma força devastadora – construindo um romance louco e polifônico, escrito por uma mente brilhante e compulsiva por detalhes e precisão lógico-linguística.
Definido pelo próprio autor como um “romance fractal”, as muitas histórias e aparentes fios soltos compõem a macroestrutura do todo com rigor e complexidade matemática. E sim, como num fractal, toda parte contém o todo e vice-versa. A descrição pode soar complicada, mas a estrutura em fractal é facilmente percebida por quem encara o calhamaço. As histórias se conectam (às vezes por detalhes aparentemente insignificantes, como uma das mais de 300 notas de rodapé que acompanham o texto) criando pontos de contato e espaços vazios, se completando e se distendendo, num complexo balé literário (ou jogo de tênis, como Foster Wallace certamente preferiria) do autor com o leitor. Segundo o tradutor Caetano Galindo bem explicou no blog da Companhia das Letras, ao invés de uma estrutura simétrica e linear, como a da maioria dos livros, Foster Wallace optou por uma estrutura inspirada num triângulo de Sierpinski3, um fractal. Desse modo, ele ao mesmo tempo quebra e renova a estrutura do romance contemporâneo – um projeto pretensioso e corajoso.
Para sustentar essa estrutura inédita, o autor recorre a uma linguagem também inovadora, que mistura, sem a menor cerimônia e sem soar enfadonho, uma profusão de termos técnicos e médicos com arcaísmos, gírias e muitos neologismos. Ao longo das muitas páginas, não faltam assuntos para Foster Wallace mostrar seu completo domínio narrativo e estilístico. Ex-estudante de matemática aplicada e autor de um livro teórico sobre o infinito4, ele escreve com segurança sobre lógica, números e equações. Aliás, em Graça Infinita, ele escreve com graça e propriedade sobre quase absolutamente tudo: doenças mentais, farmacologia, jogos de tênis, filosofia, cenas familiares, resenhas de filmes, armas nucleares, arquitetura, memórias infantis, condições atmosféricas, relações amorosas, diálogos banais e muitos outros assuntos.
O livro também é um poderoso compêndio das imperfeições humanas, físicas e mentais, e choca com relatos abrasivos de personagens com os mais variados problemas e histórias de vida. Exemplos: uma viciada em drogas dá à luz um natimorto e o carrega por semanas para a imagem de mãe solteira a ajudar em sua mendicância para sustentar seu vício (até que o bebê morto começa a feder); uma menina que tem de conviver com uma mãe que a tortura psicologicamente e com seu pai que constantemente abusa de sua irmã deficiente e indefesa; entre outros relatos de gelar os ossos.
Longe de ser apenas um romance “cabeça” depressivo, Graça Infinita é uma leitura absolutamente prazerosa e, em muitos momentos, hilariante. E assim, alternando um emaranhado de situações surreais, com relatos trágicos e cômicos, o autor investiga questões essenciais do tempo atual: sustentabilidade, sanidade, prazer, culto à beleza física, consumo e entretenimento. Por meio de deformados, viciados, bipolares, aleijados, psicóticos, alcoólatras, maníacos compulsivos, depressivos, sociopatas, assassinos, psicopatas e outros tipos da vasta fauna humana, Foster Wallace coloca os leitores e a própria literatura diante de um espelho fragmentado, incompleto, perverso e belo. O resultado de suas escolhas formais e estéticas pode não agradar a todos, mas é um trabalho inegavelmente instigante. Um desses livros que não se esgotam na primeira leitura e que deixam um zumbido permanente ecoando na cabeça de seus leitores. Uma obra genial e geniosa.
[1] David Foster Wallace nasceu em 1962 em Ithaca, no Estado de Nova York, e se suicidou aos 46 anos em Claremont, na Califórnia. Escritor, jornalista, professor de literatura, ele também foi um excelente tenista e, segundo relatos, só não se profissionalizou porque preferiu seguir a carreira acadêmica. Como jornalista, ele foi apontado como renovador do estilo americano New Journalism, e levou os ensinamentos de Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer a um novo patamar. Como escritor, Foster Wallace publicou contos e dois romances, além de ter deixado um terceiro, publicado postumamente. No Brasil, a Cia. das Letras já publicou, além de “Graça Infinita”, os títulos “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” e “Ficando Longe do Fato de já Estar Meio que Longe de Tudo”, ambos coletâneas de contos e trabalhos jornalísticos.
[2] O título original do livro, “Infinite Jest”, é um excerto de uma fala do quinto ato de “Hamlet”, de William Shakespeare. Numa das cenas mais famosas e replicadas da dramaturgia, o atormentado príncipe dinamarquês segura a caveira do falecido bobo da corte Yorick e diz: “I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest, of most excellent fancy” (em tradução livre: “Eu o conheci, Horatio, um cara sempre brincalhão, cheio de imaginação”).
[3] Criado pelo matemático polonês Waclaw Sierpinski, o triângulo que leva seu nome é uma forma elementar na geometria fractal por diferentes motivos, ente eles: qualquer uma de suas partes é idêntica ao todo; não perde a sua definição inicial à medida que é ampliado. Para desenhar um triângulo de Sierpisnki, basta fazer triângulo equilátero com um vértice apontando pra cima. Aí, desenhe dentro outro triângulo, com o vértice apontando pra baixo. Assim, são criados mais três triângulos e áreas vazias para repetir o processo infinitamente, como na imagem abaixo.
[4] “Everything and More: A Compact History of Infinity”, ou Tudo e Mais um Pouco: uma História Compacta do Infinito, em tradução livre. Lançado em 2006, o livro ainda não tem tradução no Brasil.