O historiador das ideias J. G. A. Pocock observou como as caracterizações da cidadania grega e romana no período clássico servem de padrões conceituais para entendermos a cidadania contemporânea. No modelo grego, especialmente na Atenas dos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o aspecto-chave é a igualdade dos cidadãos como criadores das leis. Em contraste, o modelo romano imperial destacou a igualdade de estatuto dos cidadãos perante a lei. Assim, igualdade de participação e igualdade diante da lei inspiraram diversas teorias da cidadania na tradição ocidental. Ambas as ideias também foram plasmadas na construção da cidadania democrática moderna. Nas democracias constitucionais são enfatizados tanto os meios de participação na realização do bem comum, como a defesa de direitos fundamentais de indivíduos e minorias. O politólogo Sidney Verba afirma que o ativismo cívico atual envolve voto, protesto, apresentação de ideias, engajamento, contribuição financeira e campanha a favor de candidatos aos cargos públicos. Este modelo atual de cidadania apresenta três pré-condições claras: 1) oportunidades de participação; 2) motivação pessoal; 3) recursos de tempo, dinheiro, redes relacionais.
Estas balizas conceituais da teoria política, contudo, ajudam a esclarecer apenas parte da cidadania brasileira contemporânea. Desde a Constituição de 1988, direitos fundamentais são assegurados do ponto de vista formal. E como se percebe no dia-a-dia do Brasil, é inegável a motivação, o interesse, os recursos relacionais, financeiros e temporais disponíveis de vários brasileiros, e a manifestação permanente e ostensiva de suas ideias políticas. Por outro lado, verifica-se a escalada de truculência, agressividade, desrespeito, violência verbal e física vinculadas ao exercício da cidadania. Como explicar esta incivilidade e intolerância entre grupos políticos divergentes? Por que os padrões básicos da cidadania são insuficientes para gerar no Brasil uma ambiente político menos violento?
Podemos apontar pelo menos um aspecto da cidadania, ainda mais elementar que os citados acima, que não se percebe no Brasil: as premissas éticas e solidárias que a noção de cidadania exige. Tanto as teorias clássicas como as teorias modernas de cidadania pressupõem algum grau de solidariedade e reciprocidade entre cidadãos. Os integrantes de uma comunidade política precisam ver uns aos outros como parceiros iguais na empreitada coletiva pela coexistência. Qualquer noção de cidadania requer uma noção mínima de “cidade”, ou seja, de comunidade. Assim, aqueles grupos e indivíduos que persistem no ativismo político fanático, voltado ao simplismo de atacar e destruir o grupo político adversário, insurgem contra a linha mais elementar da cidadania: a ética da fraternidade. Quem não reconhece o outro como irmão em algum nível, não se sente responsável por ele em nenhum nível. No passado Ruy Barbosa observou que muitos brasileiros vivem a “lei de Caim”: a lei que nega todas as leis. Não há cidadania sem o vínculo mínimo de fraternidade. Conforme Denis Diderot: “Do fanatismo à barbárie não há mais do que um passo”.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo