No mês de janeiro, um vídeo no Twitter alcançou quase 40 mil visualizações ao expor uma absurda teoria da conspiração de que Ayrton Senna estaria vivo. Na publicação, é possível ouvir a voz de um homem que, num grupo de extrema-direita do Telegram, narra a hipótese baseada numa vista aérea do túmulo do piloto de que ele estaria vivo e escondido nos segredos do QAnon, um guarda-chuva de conspirações internacionais que nasceu nos Estados Unidos.
Por mais inacreditável que pareça a teoria de que o piloto sobreviveu ao grave acidente na corrida de Ímola, na Fórmula 1, em maio de 1994, e tenha resolvido se esconder com a ajuda do grupo anônimo que prega o combate ao que chamam de “globalismo satanista e comunista”, essa e outras conspirações encontram palco no submundo das redes sociais, especialmente o Telegram.
Um levantamento dos pesquisadores Leonardo Nascimento e Paulo Fonseca, da Universidade Federal da Bahia, mostrou que apenas a teoria de que Senna estaria vivo foi tema de 23 postagens em pelo menos uma dezena de grupos do Telegram, que alcançou pelo menos 100 mil pessoas — um somatório dos inscritos em grupos como “SUPER GRUPO B-38 OFICIAL” e o “Vista Pátria Chat”.
E essa nem é a mais popular. A tese de que as vacinas contra a Covid-19 trazem consigo a implementação de um chip 5G, que serviria para que órgãos como a OMS e a ONU pudessem rastrear as pessoas a todo momento, acumulou 3,7 mil publicações entre abril de 2020 e janeiro de 2023 em grupos de extrema-direita. O auge, inclusive, foi em outubro de 2022, às vésperas da eleição, quando a vacinação do país nem estava tão mais em pauta.
O QAnon se espalha pelos grupos bolsonaristas e ganha características (delirantes) brasileiras. Aqui a teoria é que Ayrton Senna estaria vivo porque foi protegido pelo “Q”. pic.twitter.com/T4aydhuhpV
— judz (@nietzsche4speed) January 25, 2023
Já a ideia de que o Lula morreu e um sósia o substituiu explodiu após o resultado do segundo turno. Entre 6 de novembro e 31 de janeiro, foram 426 posts no Telegram com vídeos que, supostamente, provam que o “novo Lula” teria dez dedos nas mãos, ao contrário do “original”.
Outras teorias têm ligação com fatos mais recentes. Desde o dia 8 de janeiro, quando golpistas invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília, circularam cerca de 6,3 mil posts em grupos bolsonaristas apontando “provas” de que haviam infiltrados de esquerda no ato que foram os responsáveis pela depredação dos prédios públicos.
Na última semana de janeiro, quando a crise humanitária dos ianomâmis foi a pauta nacional, os grupos de extrema-direita também agiram rapidamente para combatê-la. Segundo os conspiradores, a crise ianomâmi teria sido causada pelo regime comunista venezuelano de Nicolás Maduro, de onde os indígenas teriam sido trazidos com o objetivo de acusarem o ex-presidente Jair Bolsonaro de genocídio.
“Não é possível saber quantas teorias existem porque elas são infinitas”, explica um dos responsáveis pelo levantamento, Leonardo Nascimento. Ele pontua, no entanto, que elas seguem alguma lógica. A maioria é publicada em links fechados do YouTube e compartilhada pelo Telegram, que serve como uma rede de distribuição. Além disso, apesar dos conteúdos variados, todas elas obedecem a mesma forma. “Todas têm a ideia de que apenas um grupo de pessoas sabe a verdade absoluta, e que esse grupo é superior ao resto por deter esse conhecimento. Por isso, precisam iluminar a maioria que acredita no que a mídia ou os comunistas pregam”, diz o pesquisador.
A crença em teorias da conspiração absurdas tampouco é uma novidade. Em termos gerais, especialistas explicam a atratividade dessas teorias por responderem problemas complexos de formas simples. Soma-se a isso o contexto atual, onde as redes sociais são hegemônicas na rotina do século 21. “Hoje em dia, muitas pessoas estão capturadas dentro de câmaras de ego digital, onde só recebem conteúdo e interagem com viés de confirmação, permeados por essas teorias, sem ter acesso a nada divergente”, acrescenta Michele Prado, autora de Tempestade Ideológica — Bolsonarismo: a Alt-right e o Populismo Iliberal no Brasil.
Todos esses ingredientes foram aproveitados por grupos como o norte-americano QAnon. Esse movimento tem sua origem em 2016 quando, em fóruns anônimos da internet, um usuário com o codinome “Q” começou a espalhar mentiras de que o candidato à Presidência dos EUA, Donald Trump, seria perseguido por uma agenda satânica, pedófila e globalista que envolveria os principais líderes mundiais, inclusive a então adversária dele, Hilary Clinton. A ideia se espalhou, cumpriu seu papel na inesperada vitória de Trump e cresceu a fama do QAnon, que passou a agregar uma miscelânea de conspirações ao redor do mundo.
Nos anos seguintes ao surgimento, o QAnon encontrou um território propício para se espalhar no Brasil com o crescimento das redes sociais, sobretudo entre seguidores de pensadores de extrema-direita como Olavo de Carvalho. Essa popularidade logo seria utilizada por Bolsonaro, que se aproveitou de uma estratégia parecida com a de Trump para vencer as eleições de 2018.
Vários exemplos comprovam o crescimento da influência do QAnon na sociedade brasileira. O próprio Bolsonaro, em uma das propagandas eleitorais do ano passado, usou fotos de pessoas segurando um cartaz com a letra Q em uma das manifestações patrióticas do Sete de Setembro. A mesma situação também foi vista no meio da manifestação golpista de Brasília, em 8 de janeiro.
“A teoria que o Bolsonaro soltou, de que a pessoa viraria jacaré a partir da vacina da Covid-19, surgiu no QAnon. O tic tac, que foi o lema da ideia de que, 72 horas após a eleição, o ex-presidente lideraria uma revolta com o apoio da população para provar que a vitória de Lula tinha sido manipulada, é uma cópia da teoria da storm, também popularizada pelo Q, cuja ideia é que Trump em breve lideraria uma revanche contra os globalistas para voltar ao poder”, completa com mais exemplos Prado.
Por mais que o intuito inicial seja ironizar os casos mais absurdos, especialistas apontam para os perigos de ter esse tipo de conteúdo circulando na sociedade. Os atos golpistas de Brasília e o episódio do Capitólio nos Estados Unidos, por exemplo, são provas do quão concretas podem ser as consequências da crença nesse tipo de teoria.
“Existe um consenso de alerta em cima do extremismo. O que aconteceu em 8 de janeiro mostra gente radicalizada numa mobilização conspiratória de rejeição à democracia eleitoral que justifica a violência para atingir seus meios políticos”, pontua Michele Prado. “E o risco às pessoas se estende não só na questão da segurança pública, mas também da saúde, como no caso da disseminação de mentiras sobre vacinas que podem levar à volta de doenças sérias”, finaliza ela.