Nos mais de dez anos em que estive no governo, nas décadas de 1970 e 1980, participei de várias ações de controle de preços. No setor sucroalcooleiro, a apuração técnica de custos e a sugestão de preços a serem praticados ficavam a cargo da FGV. Com base nisso, o governo fixava os preços para cada região. Com aceleração do processo inflacionário a partir dos anos 1980, tais preços passaram a ser estabelecidos em níveis inferiores aos indicados pela FGV, o que era insuficiente para remunerar as atividades do setor.
Em 1989, diante da insustentabilidade da situação, representantes do setor e do governo negociaram um acordo que assinei como ministro da Fazenda e representante da União. A ideia era evitar a continuidade de decisões judiciais que asseguravam níveis de preços nos termos apurados pela Fundação Getulio Vagas (FGV). A União reconheceu, então, a procedência dos cálculos da FGV e a norma pela qual os preços eram fixados por médias regionais e não por unidade de produção, o que seria inviável em termos operacionais.
Com a mudança de governo em 1990, o acordo foi descumprido, o que resultou em ações judiciais movidas pela grande maioria das usinas. Após quase uma centena de casos julgados e inúmeros precatórios pagos aos credores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceram que, para os casos ainda não julgados em definitivo, os valores devidos deveriam ser calculados com base no custo de cada empresa. Desse modo, usinas com maior custo receberiam indenizações maiores. Isso significava premiar a ineficiência, gerando o risco de os valores serem maiores do que indicavam os levantamentos da FGV, que eram baseados em custos médios do setor. Deixou-se claro, entretanto, que seriam ressalvados os casos definitivamente decididos.
Agora, a União quer mudar o passado. Ao que se sabe, a Advocacia-Geral da União (AGU) busca reabrir processos definitivos, questionando os precatórios emitidos pelo Judiciário em favor do setor. Isso incluiria até mesmo reaver pagamentos realizados. É inacreditável. Como explicar aos detentores de precatórios, muitos dos quais investidores estrangeiros, que situações consolidadas pelo Judiciário podem ser desfeitas a qualquer tempo? Sem dúvida, esses investidores acreditaram (e acreditam) na solidez e na estabilidade da Justiça brasileira. Confiam que a jurisprudência é séria. O passado não será, portanto, objeto de revisão.
A iniciativa da AGU não parece ter considerado seus graves efeitos colaterais, particularmente o desprezo pela segurança jurídica, que é crucial para formar a percepção de risco do país. A deliberada opção por um novo critério de indenização constituiria, repita-se, um prêmio às empresas que gastam mais para produzir, em lugar de reconhecer o esforço das empresas que buscaram ser mais eficientes.
Caso o Judiciário passe a autorizar a desconstituição de suas próprias decisões, minando transações consolidadas e, no limite, admitindo a devolução de valores já pagos, a mensagem ao mercado será clara: no Brasil, até mesmo os créditos chancelados pela Justiça são incertos. A insegurança jurídica e o impacto na credibilidade do país seriam gravemente atingidos. Seria uma reedição do calote imposto pela Emenda dos Precatórios no governo anterior. O STF, em decisão recente, a inquinou de inconstitucional.
A União não deveria patrocinar litígios que levariam o Brasil de volta ao passado. Do Judiciário se espera a reafirmação do preceito, que tem origens históricas e institucionais, segundo o qual suas decisões definitivas não podem ser refeitas ao sabor do interesse de governos da hora. É hora de encerrar cerca de quarenta anos de descumprimento de acordos firmados pela União com o setor sucroalcooleiro.