Em 1811, aos 12 anos, a inglesa Mary Anning desencavou nas escarpas da cidade de Lyme Regis, na hoje chamada “Costa Jurássica”, no condado de Dorset, um esqueleto de 5,2 metros que mais tarde se descobriu datar de cerca de 200 milhões de anos e pertencer a um ictiossauro — o primeiro do gênero a ser estudado e hoje um dos destaques do Museu de História Natural de Londres. Aos 24, Mary, a personagem verídica que Kate Winslet interpreta em Amonita (Ammonite, Inglaterra/Estados Unidos/Austrália, 2020), fez outro achado de imensa importância: o primeiro fóssil completo de um plesiossauro, tão exótico que por algum tempo pensou-se ser uma fraude. Com técnica irretocável, Mary retirou ainda das encostas um dos primeiros pterossauros achados no mundo, entre centenas de outros fósseis que ainda pequena aprendera a coletar e que aos 11, com a morte do pai, passou a vender para turistas para ganhar algum dinheiro.
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Na loteria do azar, Mary tirara uma trifecta: era paupérrima, de classe baixa e mulher, em um tempo em que qualquer uma das três coisas já bastaria para conferir a ela uma desvantagem insuperável. Sua vida, além disso, foi cercada de infelicidade: além da perda prematura do pai e, com ela, do sustento, oito de seus nove irmãos não sobreviveram à infância. E, claro, ela própria morreu — aos 47, de câncer de mama — sem receber nem as recompensas nem o reconhecimento devidos. Mas Amonita, que está disponível para aluguel em streaming, imagina para ela um intervalo de radiância: o romance inesperado com Charlotte (Saoirse Ronan), deixada aos seus cuidados pelo marido, o naturalista Roderick Murchison (James McArdle), depois de perder um bebê.
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Mary de fato tornou-se amiga dos Murchison e muitas vezes se hospedou com eles em Londres, mas de sua vida amorosa, se é que a teve, nada se sabe. Sabe-se, porém, que ela era uma pessoa defensiva — motivos não lhe faltavam —, arredia e sem traquejo social. Ao dar a ela uma paixão, o diretor e roteirista Francis Lee ilumina a perseverança, o brilhantismo e o desgaste físico com que a autodidata Mary se dedicou à paleontologia e, ao mesmo tempo, coloca em uma perspectiva terrivelmente inteligível o ambiente de adversidade emocional então reservado às mulheres, ricas ou pobres. Esse duplo aspecto está já no título, que designa o tipo mais comum de fóssil da Costa Jurássica, o de um molusco que vivia no interior de sua concha em espiral. “Para mim, essa foi a parte mais interessante de interpretar Mary, essa solidão, esse desejo de ser amada e não saber como sê-lo”, disse Kate Winslet a VEJA.
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Amonita segue um naturalismo e uma tragicidade áspera que lembram muito o do nativo mais conhecido de Dorset — o romancista Thomas Hardy, de Tess of the d’Urbervilles e Jude, o Obscuro. Filmando quase sem iluminação artificial, na lama das encostas e nas praias batidas pelo vento e pela água, o diretor e a atriz decidiram que sua versão de Mary seria construída literalmente a partir do chão: “Cavei até as mãos ficarem cheias de cortes e marcas e entranhadas do tipo de sujeira que, por mais que se esfregue, não sai por completo. Ajudou muito, porque nunca tinha atuado tanto com as mãos, as costas, a nuca, e estava nervosíssima”, diz Kate. Muito mais fáceis, ela diz, foram as cenas de sexo: “Saoirse e eu somos amigas e cuidamos uma da outra. E adorei não ter de esconder que estou nos meus 40, não tenho o corpo dos 23 e essa é quem sou agora”. O resultado é mais uma bela e notável performance da atriz.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742
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