“Estruturas enferrujadas, emperradas, sem lubrificação e sem pintura.” Os relatos são quase unânimes. Porto Alegre é uma cidade murada. Nos anos 1960 e 1970, o sistema foi projetado por engenheiros alemães, com a enchente de 1941 na cabeça. Cresci naquela cidade e, não sei por quê, sempre achei que um sistema daqueles, com 68 quilômetros, catorze enormes comportas de aço e 23 casas de bombas, só podia ter sido feito nos anos 1970 mesmo. Hoje em dia seriam trinta anos só para as discussões preliminares, um pouco como as obras do nosso cais — o nosso “Puerto Madero”, cuja maquete já estava lá, em meados dos anos 1990, e não saiu do papel. Quase nada funcionou. As comportas vazaram e boa parte das bombas falharam. E uma incômoda interrogação sobre si mesma paira sobre as noites de Porto Alegre.
Muita gente se dedicou, como era previsível, a explicar a tragédia pela atual guerra política. Exercício inútil de autoengano. A melhor hipótese é que tudo isso diga respeito à lógica do “deslizamento”. Aqueles motores que deveriam mover as comportas não sumiram de uma hora para outra. Valendo o mesmo para o isolamento daquelas casas de bomba, que nunca foi feito. E se o sistema de contenção não servia, por que ninguém nunca pensou em uma alternativa? As perguntas são evidentes. E arrisco dizer o seguinte: elas contam muito da história do setor público brasileiro. A história das reformas que deixamos de fazer, da perda da capacidade de investimento, da burocracia que foi tomando conta de tudo. Tudo que de alguma forma sabemos e que diz respeito ao que o economista americano Alfred Kahn chamou de “tirania das pequenas decisões”. A lógica silenciosa, e por isso mesmo perigosa, das pequenas decisões, incluindo aí falhas e omissões perfeitamente “compreensíveis”, no curto prazo, mas que no final do dia produzem um resultado que ninguém queria obter. E por vezes trágico, como vimos agora.
Tragédias podem ser súbitas, como essa, ou lentas, como tantas a que assistimos. A dívida gaúcha, por exemplo, terceira maior do país, é um tipo de tragédia lenta. Foram décadas com as contas no vermelho, Estado inchado, truques contábeis e muita retórica para justificar a irresponsabilidade fiscal. Tragédia súbita foi aquele incêndio no Museu Nacional. Gestão cronicamente malfeita, pela UFRJ, captação de recursos pífia, sistemas de eletricidade defasados. Fui muitas vezes lá, quando morava no Rio, e sempre me impressionei com aquilo. De longe, via as divisórias de madeira nos espaços do segundo andar, onde a família imperial residiu por durante quase um século. Via o brasão dos Orleans e Bragança encostado em uma parede, e me lembro de pensar que só em um país sem memória ninguém havia tido a ideia de surrupiar aquilo tudo. No final, aquela imensa fogueira, pela qual ninguém foi responsabilizado.
É evidente que tudo isso pode acontecer no setor privado. A diferença é que o mercado funciona como um mecanismo de internalização de custos. Agora mesmo, no drama gaúcho, milhares de pequenos empresários perderam tudo. E saberão reconstruir, a um enorme custo pessoal. Do outro lado, no setor público, a regra permite socializar os custos de infinitas decisões, por desastrosas que sejam. Ou alguém acha que alguém vai perder o emprego ou pagar alguma coisa pela sucessão de omissões? Exatamente como aconteceu naquele incêndio carioca. Ou mesmo agora, quando aqueles dois presos fugiram de um presídio de segurança “máxima”, em Mossoró, porque alguém tinha deixado ferramentas de uma obra no pátio e as câmeras não funcionavam. No fim das contas, o custo vai para a sociedade. Para o contribuinte. Exatamente como agora, no Rio Grande. Vai para a dívida publica.
“No fim das contas, o custo vai para a sociedade. Para o contribuinte”
O maior desafio da reconstrução gaúcha está em como refazer o que foi destruído de um jeito diferente. Há exemplos interessantes, que poderiam nos inspirar. Um deles vem da tragédia que se abateu sobre Nova Orleans, com o furacão Katrina, em 2005. Quase 90% das escolas foram destruídas. A área de educação da cidade, à época, estava sob o comando de uma mulher enérgica e pouco convencional, chamada Leslie Jacobs. Leslie era uma personagem improvável para dirigir um conselho de educação. Vinha do setor privado, não tinha vínculos com as corporações, e entendeu toda aquela crise como uma oportunidade. Seu diagnóstico era simples: a cidade figurava no 67º lugar entre os 68 distritos escolares do estado de Louisiana. E era preciso mudar. Em vez de reconstruir as escolas no modelo tradicional, Jacobs e sua equipe resolveram fazer sua revolução copernicana: convocaram bons provedores privados de educação para que assumissem a gestão das escolas, no modelo das charter schools. Em vez de o governo gerenciar a imensa rede, substituíram o modelo por uma rede descentralizada, com algumas premissas: gestão feita por organizações privadas de alta performance; controle e exigência de resultados, por parte do governo; e o direito dos alunos de escolherem onde estudar. Os resultados foram rápidos e intensos. Até o desastre do Katrina, 64% dos estudantes da cidade frequentavam uma escola designada como “reprovada”. Dez anos depois, eram apenas 9%. As taxas de conclusão do ensino secundário foram de menos de 50% para mais de 70%. “Foi a maior revolução educacional americana da nossa época”, resumiu o pesquisador Douglas Harris, da Universidade Tulane. Quando Barack Obama visitou Nova Orleans e foi conversar com os alunos da Martin Luther King Charter School, definiu as escolas charter como “laboratórios de inovação”, dizendo que, graças àquela mudança, “eles estavam agora numa situação melhor do que há quatro anos, antes da tragédia”.
Essa história sempre me chamou a atenção por algumas razões. Uma delas foi a sabedoria de entender que, mesmo em uma tragédia, pode-se encontrar uma oportunidade. Outra foi a coragem de enfrentar a grande lei que assombra o setor público: a lei da inércia. Do “é assim porque sempre foi”, na frase de Raymundo Faoro. Por fim, a inteligência de saber que, no mundo público, os fatores silenciosos, as coisas “sem graça”, como a mecânica dos incentivos, importam muito mais do que o barulho da briga política. Quando se permite que organizações privadas gerenciem escolas e os pais escolham onde colocar os filhos, é óbvio que estamos falando de incentivos de mercado. Mas o governo também termina mais forte, porque agora tem um contrato com cada escola, pode punir, pode premiar.
A educação estatal é talvez nosso maior exemplo de tragédia lenta. Nunca fomos capazes de fazer, com nossas escolas, o que de algum modo fizemos quando passamos a gestão dos aeroportos para o setor privado, ou mesmo com o marco do saneamento e a concessão dos parques ambientais. Vai aí um mistério. Repito: mesmo em uma tragédia, há oportunidade. Não faço ideia se nossos dirigentes terão a ousadia de líderes como Jacobs ou Obama, em Nova Orleans. Mas sua história está aí, à disposição de todos, e quem sabe possa nos ensinar alguma coisa.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896