A divulgação de dados do Censo Demográfico, em 23 de fevereiro, causou grande repercussão na imprensa, sobretudo pela constatação do que já sabíamos, o enorme déficit de acesso aos serviços ultrabásicos de água encanada e rede de esgoto. Segundo o IBGE, em 2022, 76 milhões de brasileiros não possuíam acesso à rede de esgoto (37,5% da população), 49 milhões não tinham nenhuma forma de esgotamento sanitário adequado (o que inclui fossas assépticas) e aproximadamente dez milhões (5% da população) não tinham acesso à rede de água. Os números já foram muito piores, mas estamos ainda longe da meta, definida no Plano Nacional de Saneamento Básico, de 2013, de reduzir esses números, em 2033, para apenas 10% de domicílios sem acesso a esgoto e 1% sem acesso à água encanada. São menos de 10 anos para percorrer um longo caminho.
Já há consenso quanto aos benefícios do saneamento básico sobre a redução de mortalidade infantil e da morbidade por doenças diversas, como diarreia, hepatite A, leptospirose, entre outras. Seus efeitos não são apenas positivos para a saúde. Há boas evidências de que a ampliação do acesso à água e à rede de coleta de esgoto melhora o desempenho escolar de crianças e reduz o absenteísmo de adultos no trabalho.
Mas o que o marco legal do saneamento básico, promulgado em julho de 2020, tem a ver com isso?
A explicação direta e mais óbvia para o elevado déficit de acesso aos serviços de saneamento básico é a falta de investimentos. Por anos, esse investimento foi quase que totalmente público, por meio das companhias estaduais de saneamento, com a Sabesp, em São Paulo, e a Cedae, no Rio de Janeiro. A partir da Lei de Concessões (Lei 8.987) de 1995, alguns municípios atraíram capital privado por meio da concessão dos serviços de água e esgoto para empresas do ramo. Na maioria dos casos, essa estratégia resultou em aumento dos investimentos, o que permitiu a melhoria da qualidade dos serviços de saneamento, sobretudo pelo aumento do acesso à rede de esgoto. Mas, até 2020, em que pesem seus resultados positivos, apenas 5% dos municípios brasileiros tinham concedido os serviços de saneamento para a iniciativa privada.
É intrigante que algo que parece funcionar bem para resolver um problema tão profundo, como é o acesso ao saneamento básico, tenha atraído apenas um a cada 20 municípios. Uma das explicações para essa aparente falta de interesse de municípios em atrair o capital privado era a maior conveniência que tinham ao conceder os serviços para as empresas estaduais de saneamento. Enquanto para fazer a concessão de serviços para a iniciativa privada era necessário um complexo processo licitatório, para conceder os mesmos serviços para uma empresa estadual bastava um simples acordo, denominado contrato de programa. Em outras palavras, empresas privadas e as estaduais não competiam em pé de igualdade pela prestação de serviços de saneamento aos municípios. Essa foi uma das motivações para o novo marco legal do saneamento básico, que extinguiu novos contratos de programa e, assim, facilitou a atração de investimentos privados para o saneamento básico. Obviamente, o marco do saneamento básico não se resume ao fim dos contratos de programa, mas o seu detalhamento é mais do que caberia nessas mal traçadas linhas. Fica para uma outra coluna.
Após três anos e meio, já é possível ver alguns resultados dessa mudança. De um modo geral, houve aumento de investimento em saneamento, sobretudo nos estados que buscaram atrair o capital privado, seja na forma de privatização e concessão plena dos serviços de saneamento (quando a empresa estadual é vendida e a prestação do serviço passa a ser de responsabilidade da empresa privada), seja na forma de parcerias público-privadas (quando a empresa estadual permanece pública, mas inclui parceiros privados para viabilizar investimentos). Com mais investimento, espera-se um aumento do acesso das famílias aos serviços de água encanada e de esgotamento sanitário ao longo dos anos.
Como sempre, porém, nem tudo são flores. Os efeitos do marco legal do saneamento ainda estão longe de ser uniformes regionalmente. Alguns estados e municípios avançaram bem mais do que outros. Além disso, parte do capital privado pago pelo direito de operar os serviços de saneamento (denominado “outorga”) entra no caixa dos governos estaduais e municipais, não sendo necessariamente destinado a serviços de saneamento básico (e ajuda a explicar o interesse maior dos governantes em conceder esses serviços).
A tarifa, além disso, é alta para a capacidade de pagamento de muitas famílias, o que faz com que parte da população não se conecte à rede mesmo estando esta disponível em seus domicílios, como demostram Carolina Tojal e Bruna Guidetti, em artigo recente. Finalmente, vieses políticos, como o alinhamento ou não entre prefeitos e governadores, que nada tem a ver com a eficiência do serviço e o bem-estar da população, também ajudam a explicar por que alguns prefeitos concedem ou não o serviço à iniciativa privada, como Thayla Soares e eu mostramos em artigo recente em que avaliamos o marco legal do saneamento.
Em resumo, provavelmente não atingiremos a meta de acesso ao saneamento básico em 2033, nem estaremos livres de distorções típicas do processo político, mas a mudança legal tem fomentado o investimento nessa área e mais famílias terão água e esgoto. Por isso, o marco do saneamento, embora não seja uma panaceia, faz bem à saúde.