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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

Por Paulo Furquim de Azevedo Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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O crime compensa no Brasil? Perguntem aos próprios criminosos

Pesquisa do professor Pery Shikida, da Unioeste, com detentos em SP aponta renda média do crime de R$ 46.333 — 12,9 vezes maior que a do trabalho legal

Por Luciana Yeung
Atualizado em 26 set 2024, 20h37 - Publicado em 26 set 2024, 11h53

Recentemente, fui ao Seminário de Direito e Economia do Nordeste, em Natal. O excelente evento, organizado pelo Fillipe Azevedo Rodrigues, do Departamento de Direito da UFRN, além de palestrantes como de costume, contou com apresentação de trabalhos de alunos da graduação e pós-graduação. É sempre muito bom ver a análise econômica do direito (AED) vingando e florescendo nas diversas regiões do país, sobretudo entre os mais jovens estudiosos. 

No seminário, reencontrei diversos colegas, entre eles o Pery Shikida, professor da Unioeste, em Toledo, no Paraná. Pery pesquisa AED com uma perspectiva totalmente diferente da minha, aplicando-a para a economia do crime. A economia do crime não é uma área “original”, nem em Economia, nem em Direito e nem mesmo em AED. Já tive outras oportunidades, nesse espaço, para mencionar e mesmo discutir um pouco o trabalho do genial economista Gary Becker, primeiro teórico da economia do crime. Essa área é hoje uma das mais profícuas de economia aplicada no exterior e mesmo no Brasil. 

No entanto, apesar de se basear muito na obra de Becker, o trabalho de Pery é totalmente diferente. Contrariamente a outros economistas do crime que se valem de dados produzidos por ministérios, secretarias, delegacias, IBGE e outros órgãos públicos ou privados, Pery há 20 anos produz seus próprios dados, colhendo-os diretamente da boca de criminosos em penitenciárias Brasil afora. Ele e membros de sua equipe entram em presídios (depois de longos meses de negociação, burocracia e preenchimento de requisitos legais e formais de todos os órgãos que se possa imaginar, inclusive das comissões de ética das universidades), e fazem longas entrevistas – 50 minutos em média – com cada um dos detentos(as) que se voluntariam para participar da pesquisa.

Parece simples assim dizendo, mas obviamente existe toda uma etiqueta de linguagem (tratar todos como “senhor”, “senhora”), de postura (“peito nunca estufado”, “sentado em pose relaxada”) e de indumentária (“camiseta lisa branca sem nada escrito, calça jeans sem marca), etc que Pery foi aprendendo ao longo do tempo para ganhar colaboração e mesmo empatia dos seus entrevistados. Claro, não poucas vezes houve “sufoco”, pesquisadores da equipe, normalmente bem autoconfiantes, que achavam que tinham entrado numa “fria” – Pery e seus pesquisadores não entrevistam apenas criminosos de delitos leves: traficantes (de drogas e outras “coisas”), estupradores, homicidas, membros do PCC e afins, entram costumeiramente em suas amostras. Também entrevistam homens e mulheres. 

O que é interessante e mais válido para nossa discussão nesta coluna são os seus achados. Como já mencionei, Pery parte da teoria econômica de Gary Becker, que afirma que os delitos são cometidos porque os infratores avaliam racionalmente os benefícios e custos de cometer o ato. Caso o cálculo – por mais instantâneo, ou por mais meticulosamente planejado que tenha sido – indique que há um benefício líquido do delito, o potencial criminoso decidirá por efetivamente cometê-lo. Dentro da análise de Becker, a probabilidade de ser punido entra como o mais importante custo. Nesses casos, a probabilidade dependerá muito da eficácia das políticas públicas de prevenção à criminalidade, bem como de toda a eficiência do sistema judicial que é o responsável pela punição legal efetiva. Também importará a severidade da punição, pois, quanto mais severa, maior será o custo esperado dela. Portanto, existe uma clara mensagem de Becker sobre o que as políticas públicas podem e devem fazer para reduzir a criminalidade em uma sociedade.

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Voltemos ao trabalho de Pery Shikida. O que ele quer, com todas as entrevistas que faz, é averiguar se existem evidências de que o crime é de fato racional. Em linguagem muito simples, sua pergunta é: “O crime compensa no Brasil?” É isso o que ele tem feito nesses últimos 20 anos, entrevistando mais de 1500 detentos. 

No ano passado (2023), ele começou pela primeira vez um projeto em penitenciárias do estado de São Paulo, mais precisamente na região metropolitana da capital. Os resultados não só confirmaram tudo o que ele já tinha encontrado em outras regiões do país, como foram ainda mais impressionantes. 

Dessa vez, foram entrevistados 408 detentos e detentas, e os resultados – como antes – indicam que as travas morais, como família, educação e religião, são insuficientes para impedir a migração de pessoas da atividade legal para o crime. As principais motivações, apontadas pelos próprios detentos, incluem a busca por ganhos fáceis, cobiça e a indução por terceiros. 

Porém, o resultado mais perturbador (lembro dele ligando-me na noite em que terminou de rodar os resultados da planilha, extremamente atordoado) foi que o crime em São Paulo, não só compensa financeiramente, como gerou uma renda média mensal de R$ 46.333 entre os seus entrevistados! Ou seja, 12,9 vezes a renda do trabalho legal. 

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Assim, seus resultados confirmam, em grande parte, o que prevê a teoria econômica do crime de Gary Becker: os detentos atuaram de forma racional, avaliando os benefícios e custos do crime. Outro resultado inquietante é que eles tiveram uma taxa de sucesso de 80% em suas atividades ilegais. Porém, Pery revela que esse foi o índice mais baixo de todos os que já levantou, parecendo indicar que a polícia paulista é mais eficaz de todas aquelas que ele pesquisou (em alguns estados, a taxa de sucesso do crime foi de mais de 90%). 

Como todo estudo acadêmico, esse estudo de Pery deriva recomendações normativas para adoção de políticas públicas. Sugere que políticas focadas em educação e criação de oportunidades de emprego são as melhores formas de reduzir a criminalidade. Além disso, leis mais rígidas e críveis também são mencionadas como formas de dissuadir crimes econômicos e violentos – mais uma vez, fielmente em linha com a teoria beckeriana. Porém, algo para além do que Becker mostrava, os detentos e detentas de São Paulo admitiram que a perda moral – como a desaprovação familiar – é ainda o maior fator dissuasório. Como esse resultado pode ser interpretado merece uma reflexão mais profunda de nossa parte e dos decisores de políticas públicas. 

Um dos momentos mais interessantes em qualquer encontro de Direito e Economia em que Pery está presente é ouvi-lo falar, à mesa do jantar, almoço ou happy hour, de maneira coloquial e com seu sotaque mineiro, sobre momentos hilários, mas outros também dramáticos e emotivos, que já ocorreram nesses 20 anos de entrevistas… Estou para ver um cientista social brasileiro que conheça mais sobre os detentos Brasil afora do que Pery Shikida. 

PS: A primeira versão de seu artigo com a mais recente pesquisa, de São Paulo, está no site de sua universidade: https://saber.unioeste.br/index.php/gepec/article/view/33279   Todos os outros já foram publicados em periódicos acadêmicos. 

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Luciana Yeung é professora associada do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica, Introdução à Análise Econômica do Direito (juntamente com Bradson Camelo) e Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos (coord.), além de dezenas de artigos científicos e aplicados e capítulos de livro, todos na área do Direito & Economia.

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