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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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Reoneração da folha, depósitos judiciais e outras novidades sem sentido

O país virou uma história sem enredo e o roteirista deve ser Jack Kerouac

Por Adolpho Bergamini
2 out 2024, 15h54

Sal Paradise havia se curado de uma doença grave, mas logo veio sua separação. Sofria muito, estava angustiado com sua vida e queria outra, desejava conhecer o mundo. Então conheceu Dean Moriarty, que não tinha receio de nada e se tornou seu grande amigo e parceiro de viagem. Ali começa On the Road, ou Pé na Estrada, na tradução ao português da psicodélica obra de Jack Kerouac. 

O título retrata exatamente o espírito da história, cuja narrativa é frenética e sem caminhos certos. Não há roteiro, não há enredo. Na versão original, não havia nem mesmo parágrafos. Kerouac colocou no papel o que lhe veio à mente, sem planejar nada. Dá a impressão de que o próprio Sal Paradise é quem a escreve enquanto cruza os Estados Unidos, com Dean, pela lendária Rota 66. Os dois saem de Nova Jersey rumo à Califórnia. Não há objetivo, não há personagens com tramas complexas, apenas Sal e Dean rodando pelas estradas e conversando sobre os bares e pessoas que conheceram. Seus diálogos e experiências estão sempre às voltas com a transgressão, regados a bebidas, alucinógenos e relacionamentos de apenas uma noite, ou algumas horas.

Em On the Road, tudo é envolventemente sem sentido. Há muita falta de sentido também na desordem que vem tomando conta do ambiente tributário no país. Mas esta não é tão sedutora.

As coisas começaram em 2023, quando o governo decidiu gastar mais e, para isso, precisou arrecadar mais. A equipe econômica lançou mão de algumas medidas, umas passaram, outras não. Nos últimos dias tivemos novidades.

A primeira se relaciona à famosa desoneração da folha de salários, que vigorava há anos para 17 setores da economia nacional. A recusa do Congresso em aprovar sua revogação era algo que estava engasgado no governo, que chegou a judicializar o tema e obteve vitória no STF. Após negociações, o benefício foi finalmente derrubado, mas não imediatamente, porque o texto da Lei n. 14.973/2024 prevê a reoneração gradual do tributo, entre 2025 e 2027. É um ganho para o governo, mas uma perda para os contribuintes porque, no cenário traçado até então, teriam direito à isenção total até 2027.

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Outro ponto controverso da Lei n. 14.973/2024 está na alteração dos juros aplicáveis aos valores depositados para suspender a exigência dos impostos sub judice.

O sistema legal permite ao contribuinte questionar a legitimidade de tributos cobrados pelas administrações fazendárias. Mas o tempo do processo não é o tempo do mundo. No tempo do processo, uma decisão final rápida leva uns cinco ou seis anos para ser proferida. Mas, no tempo do mundo, esse tempo é muito tempo, seja para o Erário, que não pode ficar desabastecido, seja para o contribuinte, que precisa tocar suas operações e não ficar às voltas com penhora de bens ou mesmo negativações e protestos.

Para evitar transtornos, uma das alternativas que a legislação oferece ao contribuinte é a suspensão da execução do tributo pelo depósito judicial de seu valor, que até então era atualizado pela taxa Selic. Caso o contribuinte seja vencido na disputa, o valor é convertido em renda ao fisco, que dá como quitada a obrigação tributária porque esse índice – a Selic – é o mesmo utilizado para atualizar os impostos não pagos. Mas, se for vencedor, o contribuinte saca o numerário, também atualizado pela Selic.

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A regra vem de jurisprudência antiga e tem o propósito de estabelecer perfeita isonomia entre os participantes de uma relação jurídico-tributária. Mas a Lei n. 14.973/2024 acaba com isso, porque doravante o saque do montante depositado passa a ser ajustado pelos índices da inflação. Significa que a Fazenda Pública cobra tributos indevidos, constrange o contribuinte a depositar seu valor para evitar as mazelas da cobrança e, se vencida, devolve a quantia pelos índices da inflação, que são inferiores aos retornos de investimentos que seriam auferidos pelo contribuinte caso não fosse obrigado a se defender de uma cobrança indevida. A Fazenda Pública cobra tributos com base na Selic, mas restitui os depósitos pelos índices de inflação. É o fim da igualdade tributária.

Outra pegadinha está no imposto devido pela renda obtida nas alienações de imóveis, cujo cálculo é feito pelas regras do ganho de capital. Em linhas gerais, as alíquotas variam entre 15% e 22,5% e incidem sobre a diferença entre o custo de aquisição do imóvel e o seu valor de alienação. A conta nunca é favorável, porque o custo não pode ser atualizado, tampouco corrigido pela inflação, enquanto o negócio é realizado por valores atuais.

A Lei n. 14.973/2024 teria vindo para corrigir essa injustiça, porque permite a atualização do custo de aquisição, e sobre essa parcela, a cobrança do imposto a 4%. Parece ser um grande negócio, um trade off bastante atrativo: se o contribuinte aceitar pagar imposto antecipadamente, reduz significativamente o peso tributário sobre o ganho de capital; do contrário, não antecipa seu caixa e recolhe o imposto pelas alíquotas tradicionais apenas na alienação do imóvel. Conforme alardeado pela propaganda oficial, seria um jogo de ganha-ganha, com benefícios a todos os lados.

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Mas não é exatamente isso que está na nova regulamentação, porque o benefício dos 4% se torna integral apenas se o imóvel for alienado após 15 anos de sua aplicação. Caso seja antes disso, o contribuinte deverá pagar complementos do imposto proporcionalmente ao tempo em que o imóvel permaneceu em sua propriedade. Mais do que uma pegadinha, é um escandaloso desincentivo às atividades imobiliárias, porque o governo encoraja que os proprietários fiquem com seus bens pelo maior tempo possível para pagarem menos imposto. Mais uma vez, os gastos públicos descontrolados e a necessidade de arrecadação a qualquer custo vêm a restringir a circulação de capitais na economia.

As notícias da semana também dão conta de que um grupo de juristas pretende rever o momento em que se configura o crime tributário. Há tempos que a jurisprudência se firmou no sentido de que esse momento só pode ser caracterizado ao final do processo administrativo instaurado sobre a cobrança do tributo. Por um lado, o entendimento prima pela verdade material, porque impede que o Ministério Público se movimente antes que seja posta à prova a legalidade da própria cobrança, ou mesmo as circunstâncias que motivaram o inadimplemento e os responsáveis pela infração. Todavia, o prazo de prescrição penal também se inicia somente depois do fim dessas discussões, o que na prática tem o efeito de tornar imprescritíveis os crimes tributários e deixar os interessados eternamente sob as sombras da punição criminal.

O problema é que eventuais alterações podem ter como consequência a inusitada (e indesejada) situação em que um contribuinte demonstra não ser devedor de determinado tributo, mas, durante os anos de tramitação do processo administrativo, também foi obrigado a frequentar os foros da justiça criminal e conhecer todas as angústias que um réu inocente experimenta ao pensar na hipótese de ser encarcerado, mesmo sem culpa.

Pensando em tudo isso e nos tantos outros temas que já abordei nesta coluna, tenho a impressão de que o Brasil é uma história, mas não sei se de drama, terror, suspense ou policial. Parece mais um filme surreal de ficção, que não tem sentido ou enredo, em que as cenas simplesmente acontecem. Embora esteja impregnado da acidez, sarcasmo e ironia de Nelson Rodrigues, não tenho dúvidas de que o roteirista é Jack Kerouac.

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