Populismo tributário funciona?
A função de populismos em geral, inclusive tributários, é sempre a mesma: tirar dos holofotes os problemas reais que deveriam ser solucionados

Crise global causada pelo presidente americano, Donald Trump à parte, o noticiário recente deu conta de algumas medidas adotadas pelo governo brasileiro para aliviar tensões econômicas que crescem a cada dia.
A primeira diz respeito aos preços dos alimentos, que não cedem. A inflação é a mais cruel das taxações que a população pode ter contra si. E a inflação dos alimentos é ainda pior, porque coloca em xeque a capacidade das pessoas manterem seu sustento e darem vida digna às suas famílias.
É até mesmo poético. Vinícius de Morais nos disse que um grande amor, para ser vivido, demanda dos apaixonados certas habilidades gastronômicas para fazer coisinhas, ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, filés com fritas, comidinhas para depois do amor. Se um grande amor depende da robustez da geladeira dos amantes, então o amor ficou um pouco mais frio nos últimos meses.
Também é um problema político, porque a escalada da inflação vem colocando água no chope do governo, que não consegue entregar a “picanha para o pobre”, conforme promessa de campanha. Os números impressionam. Segundo dados divulgados, apenas em fevereiro o preço dos ovos subiu 15% e as carnes, no acumulado de 2024, ficaram cerca de 20% mais caras. No geral, a média da inflação dos alimentos foi de 7,69% no ano, bem acima da inflação geral registrada em 4,83%.
Uma das ações lançadas pela equipe econômica para reverter a situação foi a redução do imposto de importação incidente sobre certos itens, como carnes desossadas, café, azeite, óleo de girassol, entre outros. No geral, as alíquotas agora revogadas estavam entre 7% e 15%.
Todavia, economistas logo foram à mídia para dizer que a determinação desses preços é muito mais influenciada por variáveis que fogem ao controle do governo, do que pelo imposto de importação. Estão nessa conta a participação de produtos importados no mercado nacional, os custos de frete e armazenagem, os eventos climáticos dos últimos anos que prejudicaram safras inteiras e o dólar excessivamente apreciado frente ao real, que motiva os produtores a exportarem seus produtos ao invés de comercializá-los no mercado interno, gerando escassez.
É claro que os impostos incidentes sobre os alimentos também têm parte na sua precificação, mas há poucas chances de que eles sejam realmente os vilões. Vamos ver.
Boa parte dos alimentos não é tributada pelo IPI, apenas os que são obtidos mediante processos de industrialização. Quanto ao ICMS, em linhas gerais não incide sobre a cadeia de produção de diversos itens porque, em razão de um mecanismo chamado diferimento, apenas as vendas do produto acabado é que são efetivamente tributadas. Essas operações, por sua vez, tendem a ter carga fiscal reduzida, porque alimentos são considerados essenciais. Por exemplo, no estado de São Paulo o imposto sobre pescados, farinhas de milho e de trigo, alho, pão de forma, biscoitos, bolachas, entre outros, é de 7%.
O PIS e a Cofins vão pelo mesmo caminho. Segundo as regras atuais, as várias etapas do processo produtivo de produtos como peixes, carnes, tomates, cebolas, produtos hortícolas e outros, contam com suspensões tributárias, o que na prática se traduz na não incidência. Mas não é só. Ainda no contexto da produção, os contribuintes também podem tomar créditos presumidos de PIS e Cofins para abaterem outros tributos federais. Ou seja, a legislação não só isenta a cadeia de produção, como também confere outros incentivos fiscais aos produtores, que reduzem ainda mais a sua carga fiscal. Os consumidores finais não são ignorados pela legislação e as vendas a eles também são desoneradas.
Portanto, a carga tributária atual dos alimentos em geral já é muito baixa e sua precificação sempre considerou, na composição, impostos em patamares reduzidos. Se é assim, então podemos dizer que as distorções causadoras da disparada dos preços não são de ordem tributária e, provavelmente, a isenção do imposto de importação também não será determinante para a redução da inflação.
Por tudo isso, a redução do imposto de importação parece ser muito barulho que vai gerar pouco ou nenhum resultado. O que acham?
A segunda notícia que vem gerando calorosos debates é o envio pelo governo ao Senado do Projeto de Lei (PL) n. 1.087/2025. Agora é oficial, a reforma tributária da renda está em pauta e começou pela proposta de isenção do imposto para pessoas físicas que ganham até 5 mil reais por mês, em contrapartida à instituição do imposto sobre dividendos recebidos por quem ganha mais de 50 mil reais ao mês.
Considerando que o valor do salário-mínimo para 2025 é de 1.509 reais, vamos chegar à conclusão de que os agraciados com a isenção estão na faixa de renda de até 3 salários-mínimos por mês, que representam 79% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Os valores impressionam. Quando a ampliação da faixa de isenção ainda era burburinho de corredores, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que a renúncia fiscal seria de 35 bilhões de reais, mas depois revisou os números e cravou que o impacto será de 27 bilhões. É esse o dinheiro que ficará com os contribuintes para incremento de sua a renda.
Arrisco dizer que nenhum parlamentar, do PL ao PSOL, vai se opor à proposta, porque o custo político seria altíssimo. Talvez haja algum debate sobre as fontes de compensação da renúncia fiscal, conforme exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas as receitas advindas da tributação sobre dividendos podem matar a questão. Também poderemos ter ajustes no Fundo de Participação de Estados e Municípios, para que sejam recompensados das perdas do imposto retido na fonte que, hoje, incidem sobre os rendimentos de até 5 mil reais, mas nada que não seja superável.
No entanto, há reflexões a respeito da eficácia das medidas frente às necessidades atuais.
De acordo com a exposição de motivos do PL n. 1.087/2025, a classe mais rica da população brasileira paga menos impostos do que as classes menos favorecidas, porque sua renda é concentrada em dividendos, até então isentos, ou em outras fontes com tributação reduzida, tais como ganhos de capital ou remunerações com tributação exclusiva na fonte. Segundo essa lógica, a isenção do imposto a rendimentos até 5 mil reais, aliada à instituição de sua cobrança sobre rendas mensais superiores a 50 mil reais, inclusive dividendos, representa medida de justiça fiscal.
Mas a nobreza incutida no PL n. 1.087/2025 pode ter um custo. A isenção do imposto de renda sobre dividendos é um dos únicos atrativos que o empresário tem para investir seus recursos na economia brasileira. Aliás, pensando bem, pode ser o único. Os custos excessivos que nossas regras trabalhistas e previdenciárias geram à folha de salários, as inseguranças jurídicas causadas por mudanças abruptas na jurisprudência dos tribunais e uma economia vacilante são recompensados pelo prêmio que o empresário tem, ao receber sua remuneração sem descontos de impostos. Como ficará agora? O apetite ao risco que nossa economia oferece continuará o mesmo?
E aqui chegamos ao ponto nevrálgico deste texto. Se aprovadas no Congresso neste ano, as novas regras do PL n. 1.087/2025 valerão apenas em 2026. Ou seja, os 27 bilhões de reais anunciados por Fernando Haddad somente entrarão nos bolsos dos contribuintes a partir do ano que vem e, por outro lado, o início da tramitação do PL n. 1.087/2025 já pode ter motivado empresários a revisar os volumes de seus investimentos por aqui.
Entretanto, embora não gere efeitos imediatos o PL n. 1.087/2025 está rendendo boas manchetes e tomou conta do noticiário. Caso esse tenha sido um dos objetivos, o sucesso foi obtido com maestria, porque a inflação dos alimentos já não tem mais tanto peso nos jornais.
Essa é exatamente a função de populismos em geral, inclusive tributários: tirar dos holofotes os problemas que devem ser solucionados. No frigir dos ovos, anúncios midiáticos não jogam preços para baixo e até o final deste ano os contribuintes que ganham até 5 mil reais por mês continuarão enfrentando dificuldades para pagar as contas do supermercado. Colocar a macroeconomia em ordem e reduzir o valor do dólar, por exemplo, poderiam ser mais eficazes.
Enquanto nada disso acontece, os enamorados terão que explicar ao seu grande amor que ir para a cozinha e preparar com amor uma rica e gostosa farofinha vai ficar para depois. Pode ser que tenham que se contentar com um X-Salada, vamos torcer para que não seja eterno enquanto dure.