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Cristovam Buarque

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Soltos não libertos

Quarenta anos de democracia não completaram a Abolição

Por Cristovam Buarque Atualizado em 3 jun 2024, 16h45 - Publicado em 24 Maio 2024, 06h00
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  • Há dez dias, o Brasil lembrou da maior reforma social de sua história: a Lei Áurea. Mesmo assim, foi uma reforma incompleta, porque 136 anos depois os descendentes raciais dos escravos ainda são vítimas de racismo, compõem a maior parte dos adultos analfabetos, incapazes de reconhecer a bandeira nacional, vivem em condições habitacionais e sanitárias inferiores e têm renda menor do que os descendentes dos escravocratas. Nesse período, o Brasil formou imenso contingente com dezenas de milhões de pobres, negros ou brancos, descendentes sociais da escravidão. A Lei Áurea foi debatida e aprovada no Parlamento em dez dias, entre 4 e 13 de maio de 1888. Joaquim Nabuco, o principal líder dos abolicionistas, alertou que a lei não surtiria os efeitos esperados, sem distribuição de terra para os ex-escravos e oferta de escolas para seus filhos.

    Apesar desse alerta, há mais de um século negamos a reforma agrária e a criação de um sistema nacional público de educação de base com qualidade para todos. O Brasil implantou o SUS, criou uma rede de proteção social com a Bolsa Escola e seus sucedâneos Bolsa Família e Auxílio Brasil, que reduziu a penúria máxima, mas sem fazer as reformas necessárias para abolir o quadro de pobreza; adotou programas de cotas para ingresso na universidade, mas mantém o país sem as reformas estruturais que permitiriam implantar um sistema educacional para que os descendentes sociais dos escravos tivessem escolas com qualidade equivalente à dos descendentes sociais dos seus proprietários. Quarenta anos de democracia sob governos social-democratas e socialistas, depois da ditadura militar, pouco fizeram para completar a Abolição.

    “O sistema educacional ainda é dividido entre ‘escolas senzala’ e ‘escolas casa-grande’ ”

    Apesar do êxito econômico que nos levou a fazer parte das dez maiores economias do mundo, embora com baixa produtividade e sem inovação tecnológica, o Brasil mantém a mesma concentração de renda, a mesma persistência da pobreza, agravada por violência e apartação, devido sobretudo ao sistema educacional dividido entre “escolas senzala” e “escolas casa-grande”. As lideranças que em 1888 aprovaram a Lei Áurea tiveram o que comemorar. Fizeram a revolução do seu tempo: abolir a escravidão sem pagar indenização aos escravocratas. Desde então, os líderes nacionais não têm o que comemorar.

    A festa de 136 anos atrás, quando Nabuco gritou da varanda do Paço Imperial que “o Brasil não tem mais escravos”, foi se esvaindo. Seus sucessores progressistas não se equipararam a ele, pois não quiseram nem souberam completar a Abolição: não distribuíram terra, nem conhecimento. Soltamos, mas não libertamos; tiramos as algemas das pernas e dos braços, não dos cérebros e das mentes. Soltamos mas não demos o mapa necessário para orientar no caminho. Permitimos que andem, mas não ensinamos o caminho. Os próprios herdeiros dos escravos não merecem comemorar, porque foram seduzidos pela alforria de vaga na universidade, sem lutarem pela abolição plena, graças à implantação de um sistema escolar com qualidade e equidade para todos os brasileiros.

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    Da mesma forma que nega terra aos ex-­escravos, até hoje o Brasil não oferece escola com qualidade para os descendentes sociais dos escravos. Mantemos dois latifúndios que se retroalimentam: de renda e de conhecimento. Ao não distribuir conhecimento, impedimos o progresso e barramos a distribuição de renda.

    Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894

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