Há pouco mais de 100 anos não havia telefones, aviões, TV, antibióticos, computadores. Hoje, o conhecimento e a ciência permitem fazer coisas que nem as imaginações mais livres e férteis da ficção científica teriam concebido.
Mas ainda há barreiras que nem todo o conhecimento científico desenvolvido nesse período conseguiu superar. Ainda.
Isso porque um artigo publicado na semana passada pelo periódico especializado Nature suscita um debate que não deixará de atrair atenção. Pesquisadores da Universidade de Utah (EUA) identificaram as condições para “reviver” (na expressão usada pelos próprios autores) a atividade entre células nervosas presentes em olhos retirados de doadores poucos minutos após o óbito.
Na explicação dos próprios pesquisadores, morte, por definição, é a “cessação irreversível da atividade circulatória, respiratória ou cerebral”. Eles explicam que transplantes de órgãos como coração, rins e córneas são possíveis porque, com a refrigeração, eles permanecem viáveis por algumas horas. Já os tecidos do sistema nervoso deixam de ser viáveis em minutos após o fim da oxigenação. O estudo, então, avaliou a morte e o “reavivamento” (outra expressão usada por eles) neuronal usando a retina como modelo do sistema nervoso central.
Expressões como “reavivar”, “ressuscitar” ou semelhantes poderiam levar alguém a extrapolar o alcance do que o estudo verificou. Neste, os receptores de luz da mácula (uma região do centro da retina que permite a alguém enxergar detalhes) foram estimulados e os cientistas conseguiram detectar no tecido a chamada “onda B” – que é (ou era) um sinal elétrico detectável apenas em olhos vivos.
Dito isso: sempre é preciso, claro, interpretar anúncios que podem soar algo grandiloquentes com um grão de sal (no dizer dos advogados). Para que não se tomem as coisas fora de proporção. Como aconteceu, por exemplo, à época da descoberta do bóson de Higgs, que foi chamado pela imprensa mundo afora de “partícula de Deus”. Esse apelido tem um apelo irresistível para as pessoas, mas a realidade é que se trata de uma peça do chamado Modelo Padrão, uma teoria física complexa até para cientistas experimentados. Para os interessados nesta outra incrível descoberta científica, há em plataformas de streaming um excelente documentário, “Particle Fever”, que trata dos primeiros testes com o Grande Colisor de Hádrons, da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear.
Mais que qualquer promessa ou sinal de que estaria encaminhada a possibilidade de se reavivar mais do que o tecido estudado, o que se obteve já é um avanço que inspira um tremendo otimismo. Não só por ver a ciência progredir como, mais importante, para poder beneficiar quem sofre de doenças que podem acarretar cegueira. A abordagem, diz o artigo, terá amplas aplicações e impacto, “permitindo estudos transformadores no sistema nervoso central humano, fornecendo novos caminhos para a reabilitação visual” e “levantando questões sobre a irreversibilidade da morte celular neuronal”.
Esta última sentença traduz um pouco as expectativas que se têm hoje em torno de pesquisas a respeito do envelhecimento – sua interrupção, e mesmo sua reversão. Para citar um caso anedótico, o bilionário Jeff Bezos (Amazon) investe em uma empresa que pesquisa regeneração celular e prolongamento da vida.
Estamos ainda no primeiro quarto do século 21 e, como afirmado no começo, saímos da situação de não ter sequer antibióticos para pesquisar uma suposta “imortalidade”. O engenho humano é a um só tempo admirável – quando produz maravilhas que contribuem positivamente para a melhoria do mundo – e assombroso – quando encontra aplicações catastróficas. Mais que a busca pela imortalidade – que tanto inspirou as artes e a ciência ao longo do tempo –, o avanço incremental, com potencial para trazer alívio a quem sofre de doenças hoje sem cura e mesmo para ajudar a reverter a trágica condição ambiental de nosso planeta, seriam inestimáveis.