Sempre que escrevo sobre violência recebo, infelizmente, uma enxurrada de comentários defendendo o modelo de operações policiais atual, de alta letalidade, que tem como principal alvo os negros de comunidades populares.
Em 2023, agentes de segurança do Estado mataram 4.025 pessoas. Destas, em 3.169 casos foram disponibilizados os dados de raça e cor que indicam que quase 90% dos mortos (2.782) eram negros. Os dados revelam ainda que a polícia matou 243 crianças e adolescentes de 12 a 17 anos nos nove estados monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança, segundo o relatório Pele alvo: mortes que revelam um padrão, divulgado na semana passada.
Embora as imagens dessas operações sejam recorrentes nos noticiários, pouco se fala dos inúmeros problemas que elas causam para os moradores que vivem nesses lugares, além das trágicas mortes. Distantes dessa realidade, muitas pessoas ignoram o impacto dessas ações nas milhares de comunidades espalhadas pelo Brasil.
Segundo dados do Censo 2022, divulgados na sexta-feira (8/11) pelo IBGE, a população que mora em favelas cresceu na última década e chegou a 16,4 milhões de pessoas, 8,1% do total de brasileiros. Ao todo, são 12,4 mil comunidades localizadas em 656 cidades.
Em dias de operação, as famílias são impedidas de acessar serviços básicos, como postos de saúde, creches e escolas. “Na última operação que tivemos, em agosto, as crianças ficaram dez dias consecutivos sem aula”, conta Tainá Alvarenga, coordenadora do Eixo Segurança Pública e Acesso à Justiça da organização Redes da Maré, no Rio de Janeiro.
Na zona Norte do Rio de Janeiro, a Maré é um conjunto de 16 favelas com cerca de 125 mil habitantes. Quase 11% deles são crianças de 0 a 6 anos, segundo o Censo 2022, do IBGE.
PRIMEIRA INFÂNCIA EM RISCO
De acordo com o estudo Primeira infância nas favelas da Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado, em dez anos, uma criança de comunidade perderá, em média, um ano e meio de aula, em virtude de operações policiais. Os dados são dos boletins anuais de segurança pública produzidos pela organização.
Em 2023, segundo o 8º Boletim direito à segurança pública na Maré, foram 34 operações policiais que deixaram 8.100 crianças sem aula por 25 dias – uma média de 20 escolas fechadas por operação. Cerca de 9.500 atendimentos de saúde também deixaram de ser realizados, o equivalente a 26 dias sem atendimentos nas unidades. “Neste ano [2024], já foram 39 operações policiais, com 35 dias letivos de aula cancelados”, contabiliza Tainá.
Segundo ela, além da falta de aulas e de atendimento nas unidades de saúde, há também uma questão importante relacionada à segurança alimentar e ao acolhimento de crianças em creche. Com a escola fechada, não há alimentação suficiente para todos em casa. Além disso, as crianças que conseguem uma vaga em creche, muitas vezes, não podem acessá-la por conta das operações policiais que acabam interrompendo o seu funcionamento.
“Esses territórios de favelas são tão impactados que não podemos mais falar de reposição escolar. Precisamos criar políticas públicas que façam o processo de reparar os danos já causados ao longo do tempo”, avalia a especialista. “Mesmo com a Constituição Federal, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, com o Marco Legal da Primeira Infância e os planos municipais não conseguimos garantir o básico para essas crianças”, lamenta.
Para os meninos e meninas, que também foram ouvidos no estudo, é muito difícil não poder ir para a escola ou brincar na praça por conta das operações policiais. “Eles desenham uma praça ocupada pelo policial e por outros grupos, cheia de bonequinhos com armas, e também a praça dos sonhos que gostariam de ter”, relata Tainá. Segundo ela, as crianças falaram ainda da tristeza de acordar com o cachorro da polícia na sua casa. De acordo com o estudo, 40% das famílias entrevistadas dizem que os filhos já presenciaram algum tipo de violência.
Com dados contundentes, o diagnóstico sobre a primeira infância na Maré deu início a uma mobilização comunitária em defesa das crianças. Depois do estudo, a Redes da Maré organizou encontros com representantes de todas as favelas para discutir e construir propostas para o 1º Plano Participativo da Primeira Infância da Maré, lançado em 15 de outubro.
Apesar de não haver um diagnóstico como esse da Maré para o Brasil todo – o que seria, sem dúvida, muito útil e importante, uma coisa é certa: “a desigualdade é um indicador tóxico para a primeira infância”, como tão bem define Tainá Alvarenga. Segundo ela, políticas estruturais para melhorar a vida dos moradores dessas comunidades precisam começar pelos primeiros anos de vida. Já há evidências científicas robustas de que ela tem razão. Só falta ação efetiva do Estado, especialmente nesses territórios.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.