
Já sabemos (menos a Gleisi Hoffmann) que a inflação em 2024 superará o limite do intervalo de tolerância para a meta. Mais preocupante, todavia, é a elevada probabilidade de que fique também acima dele ao longo de quase todo o ano que vem, exceto em janeiro, mas aí por uma questão pontual.
Assim, mesmo sob a nova sistemática adotada para aferir o desempenho da inflação relativamente à meta (seis meses consecutivos de “estouro” do limite superior), é bom que o novo presidente do Banco Central já comece a treinar a assinatura da carta aberta que terá que enviar ao ministro da Fazenda, explicando as razões do fiasco.
Deve ser tarefa complicada, porque — se fosse para ser levada a sério — teria que esclarecer que a culpa deve ser jogada, vejam vocês, nas costas do próprio ministro da Fazenda, para não dizer nas do presidente da República.
Não quero com isso eximir a priori os erros que Gabriel Galípolo venha a cometer à frente do BC, mesmo porque seu histórico não é exatamente impecável, mas principalmente porque a piora dos indicadores de inflação tem na sua origem uma política irresponsável de aumento do gasto público.
Em primeiro lugar, as transferências às famílias cresceram mais de 200 bilhões de reais desde 2022, atingindo 1,3 trilhão nos 12 meses encerrados em outubro, quase 60% do gasto federal. Isso alimentou o consumo, principal motor de crescimento da demanda interna, o que, com a economia já operando próxima ao pleno emprego, contribuiu para a aceleração da inflação, particularmente no que diz respeito aos serviços.
“Seria preciso expor ao presidente da República que a atual política econômica levará à inflação mais alta”
Além do canal da demanda, o desequilíbrio das contas públicas fez (e faz) a dívida do governo crescer à frente do PIB. Era algo superior a 70% do PIB em dezembro de 2022 e se encontra próxima a 80%, salto que ameaça se repetir ao longo dos próximos anos.
Receios de que a dívida se encontre em trajetória insustentável têm efeitos negativos: por um lado, poupadores demandam juros mais altos para comprar os papéis do Tesouro; por outro, pressionam o dólar, já que o ingresso de recursos de estrangeiros se reduz e a saída de recursos locais se acelera. O dólar mais caro, por sua vez, implica preços mais altos de produtos importados e exportados, cujo impacto sobre a inflação já aparece desde meados do ano.
Embora esses mecanismos não esgotem o impacto das contas públicas sobre a inflação, são mais do que suficientes para explicar a piora do ambiente inflacionário manifesta na perspectiva de estouro da meta. Caberia, portanto, ao novo presidente do BC “dar a real” ao ministro da Fazenda, que poderia então passar a mensagem para o presidente da República e, a partir daí, rever a estratégia equivocada.
Trata-se, obviamente, de cenário de ficção: nem o BC vai alertar o ministro, nem o ministro terá a coragem (talvez sequer o entendimento) de expor ao presidente que a atual política econômica nos conduzirá gradativamente à inflação mais alta, assim como a outros desequilíbrios que, cedo ou tarde, se manifestarão de forma mais aguda.
É bem mais fácil culpar o clima e a Faria Lima, com perdão da rima, pela inflação e pelo dólar, seguindo os ensinamentos do eminente filósofo Homer Simpson, para quem “a culpa é minha e eu a coloco em quem eu quiser”.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923