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Sobre o boi e a floresta

Há soluções para enfrentar riscos socioambientais na pecuária. Mas elas precisam ser implementadas hoje, de olho no futuro do setor.

Por Fernando Sampaio (*)
Atualizado em 15 nov 2020, 22h20 - Publicado em 10 nov 2020, 19h33

Vendo as notícias sobre pecuária, desmatamento e mercado de carne, parece que voltamos no tempo. O relatório da Farra do Boi na Amazônia, divulgado pelo Greenpeace em 2009, desencadeou um vortex furioso de discussões e iniciativas que prometiam impor a ordem na cadeia produtiva da carne bovina brasileira e seu impacto ambiental.

Em minha vida profissional, de produtor, trader na Europa e diretor executivo da maior associação de classe da indústria frigorífica brasileira, sentei em praticamente todas as mesas de negociação que envolveram carne e sustentabilidade na última década. Fui testemunha de alguns sucessos e numerosos e diferentes tipos de fracasso. Fracassos muitas vezes ocasionados por lideranças ocas, falta de visão, diálogo e articulação na cadeia produtiva e fora dela. Desisti de desfiar aqui este rosário de histórias mal resolvidas do setor.

Escolho, em vez disso, ir direto a alguns pontos cruciais que podem ajudar a entender e fazer as escolhas certas para o futuro da pecuária de corte no país:

Em primeiro lugar, é preciso entender que o mercado é a mais poderosa ferramenta para promover a eficiência na pecuária. O fenomenal salto de produtividade visto nos últimos 15 anos aconteceu, sim, pelo uso de tecnologia, mas aconteceu fundamentalmente porque o Brasil estava inserido em um mercado internacional em crescimento. Qualquer desavisado que fale em embargo ou sanções à carne do Brasil, como forma de conter desmatamento, está no fundo propondo cortar o principal motor da sustentabilidade na atividade. O que chamamos de efeito “poupa terra”, termo cunhado pela Embrapa, é a economia de área necessária para a produção devido ao impacto dos ganhos em produtividade. Trocando em miúdos, nos últimos 28 anos, cerca de 271 milhões de hectares de floresta deixaram de ser desmatados para atender a demanda por carne por causa do aumento do uso de tecnologia, segundo a ABIEC. São 3 Mato Grossos.

O problema é que hoje a pecuária vive um aparente paradoxo. Ao mesmo tempo em que aumenta sua produtividade e reduz a área que ocupa no país, novos desmatamentos em sua grande maioria são tomados por pasto e boi. Sim, o boi da terra grilada e do desmatamento ilegal mistura-se hoje com o boi de produtores sérios. E nenhum comprador de carne aqui e lá fora quer ter sua marca e reputação associadas à ilegalidade. Ainda que frigoríficos monitorem 100% de seus fornecedores diretos, não conseguem hoje fazer o mesmo com os indiretos, por complexidades que envolvem custo, logística, concorrência desleal e rastreabilidade entre outros.

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Eu diria que há hoje na mesa dois diferentes “approaches” para o monitoramento completo da cadeia pecuária.

O primeiro deles eu chamaria de “approach europeu”. Consiste em criar uma régua bastante restrita do que seria um produto aceitável. Só podem fornecer animais os produtores que cabem nessa régua. Exigimos transparência total na cadeia, e aplicamos a regra a todos os fornecedores diretos e indiretos.

Na prática, isso significa criar o que chamo de um Alphaville dentro da favela. Um clube restrito de grandes produtores certificados capazes de atender toda a demanda do mercado em critérios sanitários e socioambientais e em volume, enquanto um mercado paralelo alternativo se desenvolve sem critério algum, para atender o resto dos mortais.

Permitam-me um parêntese para explicar outra consequência deste processo. Após suas duas grandes crises – de BSE (o mal da vaca louca) em 1996 e 2001 e de febre aftosa em 2001 – a União Europeia (UE), que era exportadora de carne bovina, passou a ser importadora líquida. E o Brasil foi o fornecedor que mais ampliou sua participação naquele mercado até 2008. Pressionada por produtores locais, a UE criou restrições em série para a entrada do produto brasileiro.

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Para entrar na Europa a nossa produção passava por um funil de exigências que incluíam aberrações sanitárias como ter que habilitar propriedades individuais dentro de uma área que já havia sido habilitada à exportação pelas regras do bloco.

A partir de 2008, ano de implementação desta exigência, a participação do Brasil no mercado europeu caiu sensivelmente. O efeito disso foi a elevação dos preços da carne, que por sua vez forçou uma redução no consumo como um todo, prejudicando assim os próprios produtores europeus. Em um efeito colateral mais do que previsível, indústrias europeias sofreram com falta de matéria prima a ponto de um esquema fraudulento de uso de carne de cavalo em produtos industrializados surgir em 2013. Ou seja, a carne tornou-se um produto mais caro e raro na mesa de 500 milhões de consumidores europeus pela imposição de restrições desnecessárias. Mais um recado a quem aposta em sanções como maneira de resolver problemas. E acho que poucos mercados emergentes no mundo, hoje os grandes clientes do Brasil, estão dispostos hoje a fazer da carne algo mais caro e de difícil acesso para seus cidadãos.

O outro é o que chamaria de “approach chinês”. A China continua fazendo negócio, garante segurança alimentar a seus cidadãos, avalia onde está o risco e trabalha junto para reduzir este risco.

Há um precedente interessante em outro case de sucesso do agro brasileiro: o selo de pureza da ABIC, a Associação Brasileira da Indústria de Café. Há algum tempo, o café em pó brasileiro era um caos. Entre diferentes marcas, encontravam-se restos de gravetos, folhas, terra e todo tipo de impurezas. As empresas comprometeram-se a melhorar paulatinamente a qualidade de seu produto, até conquistarem o selo de pureza.

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O desmatamento na cadeia pecuária deveria ser visto dessa forma. Algo a ser erradicado paulatinamente, mas com metas claras e com compromissos rígidos.

Para que isso funcione, algumas premissas básicas devem ser consideradas:

– Transparência para com o produtor rural: é ele quem pode dizer que informações quer fornecer, e o que será feito com essas informações;

– Critérios: é óbvio que existem critérios que são inegociáveis, como ilegalidade e trabalho escravo. Para todo o resto devemos exigir a melhoria contínua;

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– Inclusão: devemos inverter a lógica de excluir todo produtor não-conforme, e criar caminhos práticos para que estes sejam regularizados e voltem a se inserir em uma cadeia normal de comercialização;

– Legalidade: desmatamento ilegal deve ser tratado com comando e controle. Desmatamento legal com incentivos;

– Rastreabilidade: já existe hoje a possibilidade no Brasil de esquemas de rastreabilidade individual completa de adesão voluntária. Havendo demanda, surgem os protocolos para garantir o que os clientes querem. Obviamente que se as exigências são muitas, o benefício deve compensar o custo;

– Risco: o desmatamento ilegal e a pecuária concentram-se em algumas regiões. Assim como a produção de bezerros. Atuar em parcerias com territórios e governos (estaduais e locais) em ações que diminuam o risco irá beneficiar toda a cadeia. Temos experiências práticas disso;

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E considerando o futuro geográfico do mercado, deveríamos estar lá na China, mais do que na Europa, explicando tudo isso detalhadamente.

Em todo lugar do mundo onde se discute sustentabilidade e cadeias produtivas há sempre dois grandes ausentes: o produtor brasileiro (por cansaço ou resistência, por sentir que o que diz não é ouvido) e o consumidor asiático. É tempo de mudar isso.

(*) Engenheiro Agrônomo, Diretor Executivo do Instituto Produzir, Conservar e Incluir do Estado de Mato Grosso

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