Um pouquinho de saliva e pronto: está refeita a trajetória dos ancestrais. Com essa facilidade, e tirando partido dos meses de clausura imposta pela pandemia e do maior tempo livre para buscar novidades na internet, os brasileiros aderiram com entusiasmo a uma ferramenta de autoconhecimento que já havia virado febre nos Estados Unidos e na Europa — o mapeamento genético, que, através da comparação do DNA fornecido com uma gigantesca base de dados mundial, identifica com precisão, no mapa-múndi, por onde passaram os antepassados do indivíduo. O aumento da procura aqui foi se avolumando ao longo de todo o ano passado e explodiu em 2021 — as empresas do ramo apontam aumento de até 700% na demanda. “Antes, só era possível conhecer esses antecedentes através da genealogia. Agora é tudo muito mais prático e, quanto mais o armazenamento de dados cresce, mais preciso é o resultado final”, diz o médico geneticista Salmo Raskin.
Os mapas de ancestralidade estão disponíveis no Brasil há mais de dez anos, mas o preço desanimava os interessados. A partir de 2019, várias empresas se instalaram no país, a análise do material deixou de ser feita no exterior e o custo baixou tremendamente — hoje, o teste sai, em média, 200 reais. A pessoa compra no site um kit para a coleta de material, enviado pelo correio. Em casa, segue as instruções para passar o cotonete no interior da bochecha, embala corretamente e devolve, no envelope fornecido. As células coletadas têm seu DNA extraído, sequenciado, analisado e comparado com o banco de dados de populações de todo o planeta. Em um mês o cliente recebe um relatório on-line indicando os países e regiões percorridos por, em média, oito gerações anteriores. “As pessoas deixaram de viajar fisicamente e substituem essa ausência por viagens para dentro de si mesmas”, avalia Ricardo di Lazzaro, da empresa de mapeamento Genera.
As comparações de DNA abrem espaço para pesquisas que vão além da ancestralidade individual. A polícia americana, por exemplo, está desvendando crimes nunca esclarecidos através da testagem de amostras genéticas colhidas no local e guardadas desde então, o que lhe permite chegar a parentes do criminoso e identificá-lo. Encontrar familiares é um dos serviços oferecidos, embora a exposição do DNA armazenado esteja sujeita a autorização (dispensada nas investigações policiais). A atriz paulista Karina Puri, de 35 anos, que sempre soube de suas origens indígenas mas se surpreendeu com o porcentual africano entre seus ancestrais, tem esperança de, assim, achar um “irmão perdido” — um primeiro filho de seu pai com quem nunca teve contato. “Deixando meus dados genéticos disponíveis, posso chegar a ele, se um dia também fizer o teste”, explica.
Entre os famosos que passaram pelo exame estão a jornalista Maju Coutinho, o apresentador Tiago Leifert e a atriz Deborah Secco. Em seu perfil no Instagram, Deborah mostrou-se animada com os resultados, mesmo eles sendo óbvios — predominância europeia, sobretudo da Península Ibérica. “Neste período de pandemia, estamos distantes de quem a gente ama, mas conseguimos uma forma de nos conectar com nossa ancestralidade”, comemorou em vídeo. O influenciador Marcus Miguel, de 28 anos, conta que o teste foi uma forma de compreender melhor suas raízes. “Fiquei comovido em ver que 25% dos meus genes vêm de países africanos”, afirma. “As pessoas negras pouco sabem sobre seus antepassados. O Brasil sofreu um processo secular e institucionalizado de apagamento da sua história”, observa o historiador João Paulo Lopes.
Os testes oferecidos também são capazes de indicar propensão a determinadas doenças (o que quadruplica o preço) — um processo que não tem caráter diagnóstico e difere dos exames para identificar doenças genéticas, bem mais complexos. Pesquisa realizada pela revista MIT Technology Review mostrou que, até o início de 2019, 26 milhões de pessoas já haviam feito seu mapa de ancestralidade, alimentando uma armazenagem de dados que não para de crescer. David Schlesinger, presidente da empresa meuDNA, acredita que, no futuro, todos os bebês serão submetidos a esse tipo de mapeamento. “Entender nossa origem é um caminho para valorizar a individualidade”, afirma. Na falta de uma resposta precisa à questão de para onde vamos, pode trazer alívio à ansiedade geral destes tempos saber que a chave para decifrar de onde viemos está na ponta de um cotonete.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750