Não faz muito tempo, em 2020, uma ideia carregada de preconceito, a do homem caçador primitivo, caiu por terra com a descoberta dos restos humanos em um sítio no Peru. Os paleontólogos que os encontraram em Wilamaya Patjxa, a 4 000 metros de altitude, foram incisivos: eram fósseis de uma mulher com cerca de 18 anos de idade que tinha vivido naquela região havia pouco mais de 9 000 anos.
O que transformou o achado em uma mudança de paradigma foram as ferramentas encontradas ao lado dela, provavelmente usadas para caçar animais de porte médio como vicunhas e cervos. Os cientistas envolvidos na prospecção defenderam em um artigo que as mulheres antigas não tinham apenas um papel passivo ou auxiliar nas comunidades das quais faziam parte. Elas eram melhores do que isso. Além de caçadoras hábeis, seus corpos tinham capacidade para aguentar essas missões por muito tempo. Agora, novas e extraordinárias evidências confirmam a hipótese.
Deve-se a Cara Ocobock, da Universidade de Notre Dame, e a Sarah Lacy, da Universidade de Delaware, a empresa de soterrar ainda mais o mito do homem caçador. Dominante desde os anos 1960, mesmo após repetidas críticas de cientistas feministas, o conceito persistiu no meio acadêmico até muito recentemente. “É a ideia com a qual todos crescemos”, disse Cara a VEJA. Para acabar de vez com as dúvidas em torno dessa fake news misógina, as cientistas lideraram um estudo publicado recentemente na prestigiosa revista Scientific American, por meio do qual argumentam que as mulheres eram, na verdade, mais resistentes fisicamente, enquanto os homens se destacavam em atividades curtas e explosivas. “Estamos trazendo uma nova atualização para uma crítica antiga e em uma época na qual há inúmeras questões e controvérsias em torno de ideias de sexo e gênero”, diz a cientista.
A pesquisa desafia não apenas os estigmas de gênero na pré-história, mas também desconstrói de vez a narrativa do homem caçador. As descobertas fisiológicas, que envolvem o papel de hormônios como o estrogênio e a adiponectina na resistência de um corpo anatomicamente adaptado a esforços de longa duração, se somam a achados arqueológicos recentes. Essas descobertas indicam que as mulheres não apenas participavam ativamente da procura por animais, compartilhando riscos e ferimentos, mas também valorizavam a atividade. Em vez de uma divisão rígida entre caçadores e coletoras, as evidências sugerem uma colaboração equitativa. No avesso de imagens míticas e edulcoradas de pinturas do século XVII, como as de Peter Paul Rubens, que mostravam a Diana caçadora com ar dócil (veja na imagem de destaque). “Não era o homem que pegava a carne e a devolvia às mulheres que cuidavam dos filhos”, afirma Cara. “Todos estavam contribuindo para todas as tarefas. Os primeiros grupos de pessoas não tinham o luxo de dividir o que fazer como nos tempos atuais, nas sociedades modernas.”
As descobertas de agora pedem revisão urgente da visão ultrapassada do homem ancestral como o todo-poderoso. Até porque as mulheres lá de trás também deixaram um legado que se manteve em povos originários e até em atividades contemporâneas, como o esporte. Não é preciso ir muito longe para identificar esses sinais. No Brasil, o povo indígena Awá tem como principais atividades de subsistência a agricultura e a caça. E são as mulheres Awas as responsáveis por manejar os arcos e flechas. Em 2018, a corredora inglesa Sophie Power participou de uma prova de 170 quilômetros nos Alpes suíços enquanto amamentava seu filho de 3 meses em estações de descanso. A imagem de Power com o bebê no colo desafia noções preconcebidas de fragilidade.
À medida que desenterramos a epopeia esquecida das caçadoras pré-históricas, é hora de reconhecer não apenas as proezas físicas, mas também a complexidade e riqueza dos grupos antigos. A caça não era domínio exclusivo masculino. Tratava-se, insista-se, de parceria entre eles e elas, e ambos desempenhavam papéis cruciais. Ao romper com mitos preconceituosos, abrimos caminho para uma compreensão mais completa e adequada de nossas raízes. As mulheres pré-históricas não eram apenas espectadoras da história; eram suas protagonistas. Alguém disse sexo frágil?
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870