Logo depois de pôr os pés em solo lunar, no ápice da missão Apollo 14, no inverno americano de 1971, o astronauta Edgar Mitchell (1930-2016) disse uma sonora frase afeita a revelar como ter visto a Terra do espaço lhe garantiu uma percepção diferente e instantânea daqui de baixo. “Lá de cima, da Lua, a política internacional parece tão insignificante. Você tem vontade de pegar um político pelo cangote, arrastá-lo pelos 400 000 quilômetros até lá e dizer: ‘Olhe para isso, seu filho da p…’ ”, disse com ironia e certeza. O comentário, recuperado depois de meio século, e com perdão pelo xingamento, serve de epígrafe e mote do mais recente livro do astrofísico pop e best-seller global Neil deGrasse Tyson, Mensageiro das Estrelas: Perspectivas Cósmicas sobre a Civilização (Editora Record).
Direto ao ponto: DeGrasse Tyson intuiu, com a inteligência das grandes ideias poderosas pela simplicidade, que o distanciamento — e apenas a experiência cósmica é capaz de oferecê-lo — é o melhor remédio contra a estultice da polarização, a covardia do racismo e a ignomínia do preconceito de gênero, vergonhas terrenas. “Não se trata apenas de saber como a Terra se parece olhando do espaço”, disse a VEJA. “É a sensação que se tem ao perceber que todas as pessoas que você já conheceu ou ouviu falar existem nesse pontinho flutuante na escuridão. É o estado de espírito, em vez do estado de conhecimento, que acredito ser o mais relevante.”
É estado de espírito, sublinhe-se, que pode ser iluminado por outro episódio narrado pelo autor, contado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. Ele mantinha na mesa do centro do Salão Oval uma amostra de rocha lunar. Quando alguma discussão interminável se avizinhava, com evidente impasse, Clinton apontava para a pedra e dizia a todos que ela viera da Lua. O gesto realinhava o debate. “Servia de lembrete de que as perspectivas cósmicas nos forçam a parar e refletir sobre o significado da vida e o valor da paz que preserva”, diz DeGrasse Tyson. “É uma forma de beleza em si.”
Não se trata, é evidente, de recomendar a todos os seres humanos algum tempinho em órbita para dali corrigir posturas e eliminar agressividade. Porém, o exercício mental a que se propõe o cientista é extraordinário. Ele sugere dar as mãos a supostos ETs, capazes de enxergar a civilização com genuíno espanto. “Eu também exploro, vez ou outra, como pareceríamos a alienígenas espaciais que chegassem à Terra sem noções preconcebidas de quem ou o que somos — ou de como deveríamos ser”, escreve. “Eles servem de observadores imparciais dos nossos comportamentos, salientando inconsistências, hipocrisias e estupidezes ocasionais em nossa vida.”
O próprio DeGrasse Tyson teve de reinventar a si mesmo, como se saísse de um mundo da lua particular, para chegar ao conceito de Mensageiro das Estrelas. Nascido em 1958, período histórico em que o movimento dos direitos civis ganhava força nos Estados Unidos, ele cresceu no Bronx, bairro pobre de Nova York. “Dada a cor da minha pele, estudar astrofísica pareceu ser o caminho de maior resistência às expectativas da sociedade”, diz. Seguiu, então, firme e forte, a trilha acadêmica. Estudou em Harvard e Columbia, tornou-se diretor do planetário nova-iorquino que o inspirou na infância. Em 2014 sucedeu a Carl Sagan (1934-1996) como apresentador da nova edição de um megassucesso da televisão nos anos 1980, a série Cosmos. Virou estrela. Lançou duas dezenas de livros em linguagem simples. Foi pioneiro em “despromover” Plutão como planeta e classificá-lo como planeta anão, decisão corroborada pela ciência.
Sempre imaginou que, tendo ido tão longe — astrofísico negro na seara de brancos —, já estaria gritando contra o preconceito. Diante da proliferação das redes sociais, em que as opiniões são tratadas como tiros de fuzil, em sinfonia irresponsável, achou que deveria dar um passo além. Hoje, posiciona-se de modo mais incisivo — sem jamais abandonar o método científico que o fez celebrado. É como se, agora, bebesse do cosmo para regar os dilemas do cotidiano, aparentemente insolúveis. “No livro, nenhuma opinião é emitida”, afirma. “Faço uma reflexão sobre a sociedade a partir de verdades objetivas da ciência.”
Generoso, olhando para os mistérios do céu em busca de luz para os nós da humanidade, DeGrasse Tyson não tem medo de caminhar na contramão do politicamente correto. Ele assevera, com tranquilidade, que a Terra tem se tornado um lugar melhor, sim — a despeito do que revelam os noticiários. “Nenhuma das minhas histórias se compara às que meu pai viveu nas décadas de 1930, 1940 e 1950”, diz. “O mundo está ficando objetivamente melhor, especialmente em termos de direitos civis, liberdade, e coisas desse tipo.” A melhora, apesar da fome, apesar das guerras, apesar de tudo, pressupõe vigília permanente. Que seja, no limite, como avisou Edgar Mitchell, para pegar um político pelo pescoço, levá-lo para além da estratosfera e então mostrar que não somos nada, quase nada, diante da vastidão da galáxia — motivo mais do que suficiente para praticar a humildade, a sinceridade e a justiça.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877